Medo do esquecimento I
Foi-se o tempo em que se erguia memorial apenas para presidente morto. O século XX trouxe ao presidencialismo tonalidades neo romanas. A História, construção social que é, estimula o esforço para o estabelecimento de locais que interpretem os líderes favoravelmente. Mas hoje, como as pessoas tem à disposição uma vida muito mais ampla, busca-se outro Panteão ainda em vida. Curiosamente, essa tendência comercial nasce no momento em que o poder está muito mais difícil de ser exercido em todas as posições de comando. Contraditoriamente, a deferência pela autoridade nunca esteve tão em baixa quanto nesse mundo hiper informado, conectado, cheio e jovem. Os presidentes arrecadadores aparecem então em um momento em que os bárbaros arrebentam os portões e os políticos, ardilosos que são, juntam-se a eles e encastelam-se em suas fundações, fortalezas desse novo capitalismo feudal.
Obama ainda nem saiu da presidência e já montou um time para levantar 800 milhões de dólares para sua fundação. Segundo o New York Times, pessoas próximas ao presidente esperam e trabalham para que as doações ultrapassem 1 bilhão. O meticuloso, obstinado e hiperconectado Obama quer fazer do centro que carregará seu nome uma jóia da mobilização interativa em novas mídias.
Seus antecessores, George W. Bush e Bill Clinton, levantaram 300 milhões e 160 milhões, respectivamente, para o estabelecimento de suas fundações. Bush, tisnado por suas guerras obcecadas com o mal, optou por viver uma vida menos próxima dos holofotes, guinado pelas suas influências metodistas, deixou os negócios e a carreira para os filhos. Clinton, por outro lado, desde então não parou de correr mundo. Abrindo frentes e levantando fundos é um homem envolvido com ideias e milhões.
Sofreu um freio quando suas consultorias e palestras passaram a ser reguladas pelo Departamento de Estado em 2009, pois sua mulher, Hillary, assumiu a pasta de política externa de Obama. Memorando assinado em 12 de dezembro de 2008 estipulava que a Fundação Clinton – que então contava com mais de mil e cem colaboradores e com três grandes escritórios nos EUA e “em outras cidades ao redor do globo” – até então ancorada em doações que podiam ser legalmente secretas, se assim desejassem os doadores, deveria reportar toda sua movimentação à chancelaria americana. Clinton passou a pedir então algumas centenas de autorizações de novos contratos enquanto Hillary dirigia as relações internacionais do país e pouquíssimas foram negadas. Assinou contratos com grupos na China, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Ilhas Cayman, Rússia, Turquia, Singapura, América Latina e África. Hoje tal colorido esplendor causa encrenca na tentativa de Hillary de chegar à Casa Branca como mandatária.
Jimmy Carter foi o presidente que inaugurou o formato de instituições com interesse global variado. No caso dele foi talvez muito porque teve sua tentativa de reeleição frustrada em meio a um dos mais tumultuados e combatidos governos americanos. Seu Carter Center, sediado em Atlanta, se debruça, curiosamente, muito mais sobre questões que aparecem no trabalho filantrópico de bilionários como Bill Gates, por exemplo, do que dos políticos tornados lobistas dos anos 1990 para cá. Uma amostra especial é que Carter está próximo, após décadas de dedicação à causa, de oferecer ao mundo a eliminação da doença do verme-da-guiné. Também em Atlanta fica a sede administrativa do Habitat for Humanity, organização religiosa apadrinhada pelo casal Carter que se propõe a “construir casas simples, decentes e acessíveis“. Muitos brincam que Carter é o melhor ex-presidente que os EUA já tiveram. Fazendo, inclusive, mais coisas importantes fora do cargo do que enquanto nele. O Nobel da Paz que conquistou em 2002 coroou um trabalho reconhecidamente abnegado.
Carter transformou sua frustração em um dínamo que se abasteceu do capital político que tinha para desdenhar da Casa Branca como ponto final e assim expandir as atribuições da instituição ofertada aos ex-presidentes. Seu fulcro público eram as Bibliotecas Presidenciais. As quais são abrigadas por uma autarquia federal criada nos anos 1930, a NARA, o Arquivo Nacional de lá. São locais para que os presidentes escrevam suas próprias versões do que foram suas histórias. Erguidas e mantidas com lustre público e dinheiro privado.
A primeira biblioteca presidencial construída sob a NARA foi a de Herbert Hoover, que terminou seu mandato em 1933. É a menor de todas e a com menos material. Elas só fizeram crescer desde então quando começou a mania de financiar ex-presidentes.
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PAULO DELGADO é sociólogo.