Mercoricos

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Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 24 de fevereiro de 2013.

Os Estados Unidos e a Europa acabam de ameaçar o mundo com um espetacular apartheid comercial. Informam, ao mesmo tempo, o funeral da Organização Mundial do Comercio (OMC) ao anunciarem a criação do Mercado Comum dos Ricos. Desejo antigo, sempre adiado pelas suas claras inconveniências à paz mundial.

Quando os acordos da cidade de Bretton Woods (Conferência dos Aliados ocorrida em 1944, em New Hampshire, EUA) criaram instituições para promover a governança da economia global, ficou faltando uma delas. A Organização Internacional do Comércio (OIC), prevista para atuar com o FMI e o Banco Mundial, poderia garantir o equilíbrio pacífico do planeta. Mas foi rejeitada pelo Congresso americano. Desde então, e até a metade dos anos 90, foi o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) que cumpriu essa função, mas, diga-se de passagem, limitada e tendenciosamente a favor dos interesses dos países do Norte, encalacrados na decomposição do mundo do pós-guerra.

As profundas mudanças nos anos 1980 e 1990 trouxeram o fim da Guerra Fria e com ele uma euforia que trabalhou pela expansão da integração dos países ao mercado mundial. Países comunistas e do terceiro mundo segundo a lógica do conflito político tornaram-se economias emergentes na linguagem dos mercados. Ao longo desse período crítico se desenrolou a Rodada Uruguai do GATT que culminaria na criação da OMC: a filha temporã de Bretton Woods finalmente veio ao mundo que parecia apostar no multilateralismo. Assim, a OMC também veio a ser a mais democrática dentre as principais instituições multilaterais.

É ponto pacífico que a redução das barreiras comerciais responde pelo maior quinhão do crescimento do comércio mundial durante as últimas décadas. Comércio que cresce consistentemente acima da produção dos países e promove esse novo quadro de interdependência em que vivemos, chamado globalização. Como reduções de barreiras comerciais são decisões políticas, esse quadro sempre pode ser revertido ou reorientado. O que se vê atualmente são sinais de reversão insensata dessa tendência, com a iminente reorientação do padrão de interdependência.

As regras da OMC regem 95% do comércio mundial. Essas regras objetivam liberalizar o comércio preferencialmente de modo multilateral, mas aceitando que isso também ocorra regionalmente. A questão está justamente aí. Como a OMC prevê a possibilidade de que, paralelos aos acordos multilaterais de redução de barreiras às trocas internacionais, os países também se engajem em acordos regionais de comércio (ARCs) com esse mesmo fim, tem-se observado uma profusão de ARCs. Face não apenas à paralisia das negociações multilaterais, mas também por conta de arbitrárias arquiteturas políticas que usam o comércio como forma de traçar a trajetória do planeta, os ARCs pululam mundo afora e atualmente 354 estão em vigor. Desse gordo número a maioria é arraia-miúda, mas fluxos pesados de comércio global também se dão dentro de tais arranjos, cujos expoentes são a União Europeia, o NAFTA, o Mercosul, a ASEAN, etc.

Nos últimos anos o regionalismo se tornou uma verdadeira agenda paralela e a passos largos se constitui como agenda principal dos países ricos. E também da China, que, de tanto usar o expediente, expandiu suas trocas de maneira vertiginosa, até se tornar, ano passado, a maior nação comerciante. Os Estados Unidos, que fechou um punhado de ARCs nos últimos anos, trabalha com planos grandiosos para uma área de livre comércio no Pacífico – o que, aliás, enfurece a China, que responde a isso também com sua rede de ARCs. E agora, o presidente Obama informa sua decisão de estabelecer acordo direto também com os europeus.

No mundo do entreguerras, Grã-Bretanha, Alemanha e Japão estabeleciam-se no centro de círculos de influência mantidos por laços comercias que, grosso modo, não se cruzavam. Distantes dos escombros da guerra, os senhores reunidos em Bretton Woods montaram um novo mundo calcado na ideia de que, na tradição de Frèdèric Bastiat, “se as mercadorias não atravessam as fronteiras, os soldados o farão”. Essa ideia da paz e prosperidade liberais durou até a crise de 2008, que desnudou suas fragilidades e desencadeou uma série de distorções na economia mundial. Por sua vez, as tentativas de reorientação têm incorrido em distorções novamente graves. Do jeito que a coisa está, o que vem aí é uma regressão a um mundo de mundinhos regionais.

Só a governança multilateral pode estancar saudavelmente essa crise. Mas crescendo a descrença na possibilidade de se chegar a um acordo global, já que as conjunturas locais fazem apostar nas saídas regionais, os países ricos se antecipam e propõem a saída de “classe”: para cima e para fora da companhia dos pobres. Um alerta aos emergentes: de pouco adianta ser mais realista do que o rei, mas é imprudente ser menos realista do que ele.

PAULO DELGADO é sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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