MUROS, ESTRADAS E ROTAS
Estado de Minas e Correio Braziliense – domingo, 16 de Novembro de 2014.
Lá se foram 25 anos da queda do muro de Berlim e o mundo rejuvenesceu um pouco com a entrada em cena de estilos e posições interessantes de diálogo entre países. Espera-se que seja um fato real, mais do que contemplação ou impostura. Firmes demonstrações de uma compreensão da circularidade da história onde toda tensão exacerbada pode também fazer nascer o acordo e a reconciliação. Afinal, os últimos meses não foram prosaicos nas relações internacionais.
A agenda negativa do mundo não arrefece ofuscando e desviando o rumo do encontro do G-20, na Austrália, sobre a sorte econômica dos países. O Oriente Médio sectário e o conflito Rússia-Ucrânia realimentam o prato do antagonismo mundial mantendo forte o apetite dos que pregam a desilusão democrática como doutrina. Tristes tempos para o multilateralismo.
É em virtude desta sina de inação e desavenças no ambiente multilateral que se deve festejar bons sinais oferecidos pelo bilateralismo. O último deles foi esse acordo selado entre EUA e China para cortar emissões de gás de efeito estufa. As duas maiores economias do planeta que sempre se portaram como principais dores de cabeça nas conferências globais do clima, resolveram começar a se acertar por conta própria. Alívio grande já que as duas são responsáveis por quase metade (cerca de 44% atualmente) das emissões nocivas do planeta. Um grande passo para o clima sem dúvida alguma, mas de forma mais ampla uma demonstração de que o temido G-2, negado tanto por Washington quanto por Pequim, é uma realidade inescapável. Traços importantes da realidade global poderão ser submetidos à consideração prudencial de seus principais protagonistas. Não sei se vão ser resolvidos entre os dois, mas o fato dos problemas climáticos ficarem flutuando na esfera de um ou de outro, pode ajudar a salvar outros países. Engana-se quem pensa que há interesse real em Pequim de fazer antagonismo a Washington. As máscaras do antagonismo são portadas apenas para proteger pontualmente seu direito à autonomia e ao exercício ponderado de poder. Exercício esse que quer exercer inclusive em conjunto. Assim, quem sabe, mais prudentes, EUA e China ajudem o mundo a se protegerem dos EUA e da China.
Do rol dessas encenações virtuosas, uma delas ainda não deu sinais de esgotamento nessa semana, mas começa a dar, ao menos, sinais de que não é só encenação. Quando no primeiro encontro entre o atual primeiro-ministro japonês e o presidente chinês a disputa pelas ilhas Diaoyu (em chinês) ou Senkaku (em japonês) foi levada muito bem a arrefecer. Não que não possa inflamar novamente – na foto oficial do encontro, durante o aperto de mão, um mirava o Himalaia, o outro o vulcão no Monte Fuji – mas, no momento, é apenas peão manobrável no tabuleiro de facetas instransponíveis de tão contraditórias.
Mais bem encaminhada está a pacificação da velha disputa entre Japão e Rússia pelas ilhas Curilas. Assim, de modo geral, todos se mexem no Oriente, cada vez mais ampliado, para garantir melhores chances de influência e maior lugar ao sol nos tempos vindouros. Às vezes consegue-se isso cedendo, ofertando, doando, reconciliando.
Do ponto de vista material chamou atenção o apetite chinês de criar um fundo para financiar o que eles dizem ser uma nova Rota da Seda. Iniciativa fundamental, não apenas de boas vizinhanças, mas de grave interesse comercial e de solidificação da dependência regional ao império do meio, assim como foi por séculos a fio. Colocar, tributários da China, todos países ao redor por meio de facilidades logísticas e acesso a mercados.
Enquanto isso do outro lado do mundo o desenrolar do acordo comercial chinês com os membros da Cooperação Asia-Pacifico(APEC), como forma inclusive de fazer contraponto a proposta americana da Parceria Transpacífico, é trabalho consistente de defesa do interesse próprio num ambiente hostil e de comprometimento. Com um papel protagonista no desenhar das décadas que estão por vir.
Aproveita inclusive, em outra frente, os imbróglios que a Rússia vem passando com o Ocidente para oferecer um ombro amigo na forma de mais contratos de compras de hidrocarbonetos.
1984, livro de George Orwell, é um sonho às avessas, uma distopia. Falava da gigante Eurásia. A Rússia fazia parte. Em um mundo que cada vez mais pende para aquela porção mais oriental do globo, a Eurásia tende a perder influência e território, passando a ser bem menor do que o imaginado na ficção orwelliana. No lugar tende a aparecer um inflado leste asiático (ou extremo oriente) que absorva inclusive essa Rússia, tão bela e tão filosoficamente sem rumo. Espera-se somente que a realidade se distinga do visionário livro não só geograficamente, mas que tenha pontes, estradas e rotas progressistas e emancipadoras do ser humano.
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Paulo Delgado é sociólogo.