O horror estético das massas
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 8 de julho de 2018.
Erra quem interpreta a vitória eleitoral espetacular do próximo presidente mexicano, antigo prefeito da Cidade do México, DF, puramente como conquista da esquerda. Não que ele não seja um esquerdista na visão do filósofo Norberto Bobbio: uma pessoa mais imersa no mundo dos mais pobres e que luta pela justiça social degraus acima da liberdade individual. Relativamente aos últimos muitos presidentes do México ele é diferente. No entanto, o fato é que, como militante político tradicional, concorreu em uma plataforma altamente publicitária que junta combate à corrupção, à violência, à privatização e ao establishment. Tipo de plataforma circunstancial que é muito utilizada no Brasil, já elegeu pela esquerda, agora agita pela direita, acaba sempre se irrealizando na prática.
Há uma onda de ciclo curto onde a natural alternância que o eleitor e a sociedade buscam fazer entre grupos de poder conhecidos ultrapassa questões ideológicas. O México ficou décadas trocando o poder entre conservadores tradicionais na sua institucionalizada “revolução”. O presidente eleito domingo passado, quando perdeu a primeira vez, se proclamou eleito e até montou um governo paralelo, como é comum na região. Ou seja, desta vez, como não houve mal-entendido, foi feita a troca menos traumática, que é colocar um conhecido que nunca ocultou seu desejo de governar o país. A aceitação de um não conservador deve ser vista sob a ótica da rejeição recorde à atual administração conservadora e ao que se passa na retórica oficial dos EUA com relação ao país, o que dá margem a discurso mais inflamado em qualquer lugar. Não há necessidade de saber o nome de ninguém, pois nenhuma ação no período eleitoral tem sido irmã de sonho governamental. Está em curso o princípio universal do mais frio horror estético das massas quando o assunto é votar visando ao interesse geral.
A onda de ciclo longo, mais rara e por isso ainda mal compreendida, pois de fato causa estupefação, é a do mal-estar civilizacional com a estrutura vigente dos arranjos sociais, políticos e econômicos que sustentam a realidade no mundo atual.
Essa realidade sofreu um único rearranjo significativo interno e orgânico desde 1945, com a guinada neoliberal globalizante a partir de 1990. Seja econômica ou comportamental, liberais foram todos os governos importantes, de esquerda e de direita, de 1990 para cá. A insistente crise que chegou na década passada está acabando com esse élan, de lado a lado. São graves as chances de ruptura nos acordos que mantêm a paz mundial.
Por fim, para além das ondas globais das quais faz parte por força das circunstâncias objetivas, o novo presidente mexicano quer criar a ideia de que em torno de si avoluma-se uma terceira onda, especificamente mexicana. Cioso e estudioso da história que é, ele se coloca mais como o depurador do que na sua visão são fragilidades institucionais legadas pelo próprio processo de formação do Estado mexicano.
Se ele quiser preservar sua decência e trazer justiça social de fato, é prudente que evite ser a cara da vez do velho populismo de esquerda. Que na verdade é uma corda bamba latino-americana que vai da direita para a esquerda. Basta alguém ficar insistindo em manipular a massa que ela vagueia entre seu ideal teórico de mudança e a tentação prática de enfiar um parente no gabinete do presidente eleito.
Veja o caso das privatizações. Toda essa conversa contra a privatização só existe onde não existe Estado público. Se o Estado fosse mesmo Estado na América Latina, qual o problema de privatizar e fiscalizar a gestão privada e induzi-la ao desenvolvimento? Todavia, o Estado mexicano é tão privado como o nosso, não há nenhuma área realmente pública. Mesmo a criminalidade e a corrupção são fortemente estimuladas pelas corporações e agentes públicos envolvidos. Fortalecer indústria de petróleo pública no México? Ora, é aumentar a corrupção, pois o costume na região é empresa estatal se tornar propriedade dos seus altos funcionários e dos políticos obcecados em usufruir de monopólio.
Ao menos 136 políticos foram assassinados desde setembro no México. Qualquer ideia de Estado judicial-policial pode rapidamente descambar para anacronismo disfuncional. Talvez um aguçado senso de destino pessoal tenha levado o presidente eleito no dia do anúncio de sua vitória a ser espantosamente comedido. O centro do que disse foi que queria “entrar para a história como um bom presidente para o México”. Meu Deus, que país precisa mais do que isso? Para ser bom presidente, nada melhor que uma noção desmistificada de si e do que rege o mundo. Bom governo, presidente Andrés Manuel López Obrador.