O protocolo
O Estado de S. Paulo, 09 de Janeiro de 2019.
Desprovida de acontecimentos interessantes, a cerimônia de posse é uma rotina. Até que uma expressão forte, direta e popular rouba a cena. O discurso da primeira-dama Michelle Bolsonaro é precursor de uma soberania específica, positividade que deve ser vista pelo que foi efetivamente visto, dito e ouvido. Não há muito espaço para o não aceitar, resistir a admirá-lo. Sua aparição, inesperada, com sua intérprete para a língua do discurso, foi a coisa mais emocionante que se viu numa posse presidencial. Seu ato, espiritualmente suficiente, demonstra que nem toda a realidade passa pela política e dispensa a boa-fé de dizer que a visibilidade do poder vai facilitar resolver a dor dos surdos de que está imbuída. Contém uma ruptura com nossa época de emoções estudadas, configurações, abrindo fronteiras espaciais novas, fora do mundo do protocolo, o esforço institucional previsível que costuma montar a armadilha que freia a novidade nos lugares de comando e controle, que são a base do poder. As primeiras-damas impedem que o poder se manifeste em estado puro e possuem segredos, investimentos de desejos, que estão além dos interesses de influência e mando. Embora não sejam propriamente as titulares do poder, podem modelá-lo ou revelar seu inconsciente.
Observar o fato microfisicamente permite tranquilizar o sistema político derrotado quanto à continuidade-descontinuidade das estruturas simbólicas mais importantes de uma nação, que é ver o poder se dirigir, preferencialmente, “aos que se sentem esquecidos”. Nem todo discurso fora da ordem significa que surgiu outro saber que invalide o passado. Mas abre caminho para a observação do que pode constituir a natureza estratégica do novo governo. “Onde há poder, ele se exerce.”
Bem, passando para outro discurso claro, compreensível e positivamente propagandista, de Paulo Guedes, vê-se que não há segredo diante do interesse e é possível observá-lo materialmente. Sua equipe é inteligente, experiente e conhece o funcionamento do Estado. É evidente que ali o poder se exerce na direção de desatolar a locomotiva brasileira e – não somente – para investidores e grupos econômicos embarcarem em boa e segura velocidade. Quanto mais difuso for o interesse de melhorar, mais sucesso governamental, em especial se alguém pensar que a economia deve crescer principalmente para aqueles que não têm muito interesse no governo. Deve ajudar quem está disposto a penetrar na vida quotidiana e observar que nem 8% da população ganha mais de R$ 5 mil, nem 5% compram livros, ou que os jovens são os que mais sofrem com o desemprego. O discurso foi duro, mas também tranquilizador quando deixa claro por que as transformações requeridas não precisam incluir nenhum dispositivo político espetacularmente novo. É o que saiu da eleição que está sendo convocado. Contém um alerta de como evitar que o poder queira ser humanista sem ter nenhuma base na realidade dos necessitados. E vai ao ponto, como arqueiro preciso e frio: os que fazem e julgam a lei, até aqui, agiram em seu próprio benefício, indiferentes à vida de mais de 200 milhões de brasileiros.
A teoria geral que está por trás do nosso problema econômico, com sua confusão entre cidadão e consumidor, direito adquirido e privilégio, é o fato de não conter nenhuma transformação relevante que seja constante, estável, nos últimos 60 anos. Pontualmente, nada se tornou universal, autossustentável. Entre nós a economia é uma prática precária, dispersa, subordinada aos governos de cada período presidencial. O que parece proposto é um novo exercício do poder, com um pouco mais de ênfase na autonomia e na liberdade de iniciativa. O tipo específico de poder que se quer configurar – liberal, conservador, de direita, etc. – precisa articular-se de maneiras variadas com o que está disponível entre altos e influentes servidores públicos, com destaque para o Congresso e o Judiciário, as duas maiores extremidades do privilégio previdenciário e salarial brasileiro.
Se o objetivo é fugir de um tipo específico de poder, é preciso, de fato, transformar o sistema estatal de esperança, mudar a mecânica do poder na sua relação com a sociedade, abrindo mão de técnicas de dominação estatais. E ter mais cuidado com o alcance da representação democrática. O fato, por exemplo, de o povo desejar ordem e progresso, o que é verdade, não se confunde automaticamente com os que estão dispostos a realizar tal interesse sem levar em conta a sutileza que existe nos limites do poder de representar. É preciso cuidado ao falar pelos outros. Outra dúvida, também, é querer combinar as boas ideias liberais com qualquer tipo de revide, desforra ou ajuste de contas. O Estado é formado por jurisdições seculares e a eleição produz um confronto natural de revezamentos, sem necessidade de muita eloquência adicional após a vitória. Assim, não há necessidade de querer reconfigurar culturalmente o Brasil ou confundir, em política externa, simpatia com subordinação.
O governo precisa ficar atento para o fato de que nem todas as mudanças que estão acontecendo na sociedade são provocadas pela política ou pelo minucioso e detalhado papel do Estado na vida das pessoas. Existe hoje outra rede de poderes, mais eficiente, presente e preparada do que o Estado, controlando e determinando valores, os comportamentos e a vida de todos, como uma inundação incontrolável. O papel do Estado é ajustar o calibre, sem tutelar. Muitos problemas brasileiros têm existência própria, são gerados em instituições específicas ou prosperam nos escalões mais altos, médios e baixos do centro e da periferia. Todo governo que pretenda dirigir ou influenciar a conduta de crianças, jovens, adultos e velhos será um governo hermético fadado ao fracasso. Pois se frustrará ao perceber que as ilusões da esquerda, com o Estado Educador Coletivo, são da mesma natureza autoritária da crença da direita no Estado Pastoral Conservador.
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