O QUE MOVE A MULTIDÃO DE PEREGRINOS
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 25 de Dezembro de 2016.
Julgamento e Direito são centrais a todas religiões. A grande procisão que leva a maioria dos seres humanos a ter fé iniciou, para os cristãos, 6 séculos antes do dia de hoje, início da era comum. No Oriente, de onde veio o budismo, quase um milenio antes. E o que guia todos os peregrinos é “querer viver vendo a justiça correr como água e o direito qual riacho que não seca”.
Na Retórica de Aristóteles, grego nascido 384 anos antes de Cristo, está dito que as coisas que são essencialmente boas são aquelas que valem mais para a pessoa, após a sua morte, do que durante a sua vida. Trata-se da ideia de que o caráter do que é bom está vinculado a algo que dura para além da existência humana, algo que transcende, beneficiando mais aos outros do que ao executor do ato e ao mentor da ideia. O “benefício” desapegado é que forma o caráter do homem, e confere identidade eterna àquilo que buscamos ser. Muitos chamam a esses de“pessoa de alma boa”.
Coisas que fazem bem à alma tem valor maior do que aquelas que só fazem aos instintos e às sensações passageiras. A ideia do Natal é a celebração dessa marcha para o céu. Mesmo as religiões que “odeiam os atrativos dos sentidos, e imagens não tolera, não conseguem esconder a emoção diante de um presépio. As sagradas pessoas e seus episódios. Oh, que valem o ouro e o brilho das jóias que ornam os reis da terra?” Parafraseando o Presidente Obama poderíamos dizer: o Sermão da Montanha é uma passagem tão radical que é de se duvidar que nossa Justiça sobrevivesse à sua aplicação.
Essa época que vai do Natal ao Ano Novo é um período em que faz bem refletir sobre compaixão e fé. Qualquer que seja a compreensão que temos da vida humana, é na relação com o sentimento dos outros que se conformam nossos valores. É através deles que sedimenta a verdadeira felicidade. Uma vez que todo aquele que fundamenta sua vida em deveres de convivência, atenção e solidariedade, movidos pela fé ou sendo laicos, se provocados à reflexão, reconhecem a força da ideia de um Deus que se fez humano. Afinal, se o próprio Deus tem empatia com sua criação a ponto de se tornar parte dela, o fato de permitir ter empatia com seu semelhante – por mais diferente que o enxerguemos – quando não vem como dádiva , deveria vir como uma divina obrigação. Que autoridade, que não usa peso e medida justos, sobreviveria a seu ato, se destinado a ele?
O Natal é uma data cristã, mas seus valores são universais. Dos judeus, berço presente do monoteísmo, aos Bahá’ís, fé relativamente nova que busca valorizar mais os pontos de encontro, do que os de desencontro, entre os oriundos de Abraão. Valores que estão presentes, como fundamento, nos muçulmanos, sejam xiitas, sunitas ou sufis. Para além do tronco monoteísta, tais valores também estão expressos com distinta coerência. Confucionismo, Taoísmo, Xintoísmo, entre outros, estão aí sustentando civilizações em bons valores transcendentais. São eles, possivelmente, que permitem tornar perene as crenças e os códigos de conduta das diferentes sociedades.
Afinal, pensando institucionalmente, como duraria um sistema de valores que não tenha como central o valor da transcendência? Seria uma insuperável contradição. É certo também que os comportamentos morais e os mistérios que impulsionam as pessoas para a fé podem ser encontrados mesmo entre aqueles cujo humanismo não nasceu de fundamentos sagrados. Independente do sentimento de fé, os valores que ergueram a humanidade estão entranhados nas instituições que a organizam, da família ao capitalismo, das ideias progressistas às mais conservadores.
Num mundo de crimes e encrencas, de elites em confronto, a religião é uma crise na vida dos injustos. Por isso as instituições, que carregadas de todas as caracteristicas do caráter humano, espalharam pelo mundo a mensagem de que vale a pena fazer a coisa certa, alcançaram abrangência milagrosa.
Não é a razão, não é a riqueza, não é a saúde, não é a beleza. O que de fato nos distingue, e eleva, é a capacidade de ter e demonstrar empatia para com nossos semelhantes. Deixar algo bom para benefício dos que vem depois de nós. A virtude do exemplo como freio ao avanço da desumanização.
Se é fato que os homens buscam desde tempos imemoriais serem deuses, que tipo de deuses estão almejando ser, ou se tornando? Os maus deuses passarão. E para quem anda se admirando excessivamente, ou não quer abrir mão de nada para ajudar a sociedade a sobreviver dignamente, quem sabe, nas festas de fim de ano encontre um motivo para se apaixonar por alguém, a melhor forma do ego, egoista, não se sufocar de tanto contentar a si mesmo.
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PAULO DELGADO é sociólogo.