O que vai pelo mundo
O Estado de S. Paulo – 11 de Setembro de 2019
Periodicamente o mundo vive sua cota de ansiedades alimentada por senhores da desordem. Não há nenhuma audácia ou extravagância em épocas de inversão permitida, especialmente se as rebeldias não servem para nada, como o 11 de setembro, salvo piorar a busca pela felicidade e fazer vítimas inocentes. Se quiser viver sem amargura, deixe a mente aberta ao otimismo e ampare sua desilusão na força da História.
Na hipótese de nova crise financeira, inexiste hoje no mundo um grau de pensamento minimamente solidário para resolver um problema a partir da ação coletiva internacional. Não está no ar algo estruturado, suficiente para amenizar a queda. O que vemos é o conjunto dos movimentos dos agentes socioeconômicos mostrar que a desconfiança está nublando o horizonte.
Cada país está se achando senhor das suas ideias e partindo para experimentações sem levar em conta que o que nos salva é a harmonia da ação. Sem uma pronta ação multilateral, a atmosfera opressiva imposta ao mundo pelo estilo Trump ameaça a lógica da acumulação de capital e da circulação de riquezas em tempo de paz. O multilateralismo estava atrelado à égide de uma espécie de consenso social-democrata que se vinha formando desde o final dos anos 1980. Uma social-democracia liberalizante permitia vislumbrar mais prosperidade e distribuição de renda.
O que anda pelo mundo são puras experimentações de conceitos e ideias descartadas. Por isso democracia, liberalismo e soberania estão regredindo a formas geopolíticas arcaicas. E as três piores consequências são o enfraquecimento do multilateralismo, a volta da bipolaridade política e o comércio administrado pelo protecionismo.
O principal personagem que nos está levando a este neoconservadorismo é, paradoxalmente, a disrupção mental e comportamental que a tecnologia pode causar. Diferente do momento histórico em que surgiram a imprensa e o telefone, com a internet o bobo da corte virou rei.
As novas tecnologias de informação e comunicação, que estão evoluindo com rapidez extasiante, são uma maravilha, tanto quanto a imprensa e o telefone, mas estão desestabilizando as sociedades tocadas por elas com uma fúria, rapidez e imprevisibilidade sem fim. O que temos hoje é um mundo de aplicativos pescando incautos para agendas contestatórias e levando governantes a tirar vaidade das grosserias que propagam.
Há mais de dez anos o dinheiro e o capital político migram na direção das empresas de tecnologia de informação e comunicação. Mais do que só a capacidade de financiamento, esses grupos têm vocação para influenciar e dirigir grupos políticos e movimentos sociais. Basta um paladino de alguma coisa usar com destemor a internet que ela vira a toca do urso, o mundo dos hackers e das curtidas insidiosas.
O uso celerado da tecnologia põe em risco a herança cultural universal. E está na origem do flerte com a forte contestação que sofrem a democracia, o capitalismo e, como coice de mula, a própria tecnologia. Todos os dias o cidadão livre é reinscrito em algum mecanismo de busca e levado a um oculto tribunal de costumes e interesses para ser classificado e julgado por esse sistema não jurídico de imposição de desejos. Gatos parindo tigres em todos os campos da atividade humana. A internet é pólvora indemonstrável, que dispensa a necessidade de indivíduos, das instituições e dos paradigmas da organização social democrática.
Só isso já causa uma ruptura política e social de vasto alcance. Pois esses grupos monopolistas cresceram vendo suas tecnologias serem usadas por manipuladores externos a eles, mediante associações vantajosas. Esse é o estado da arte. Quem quer poder natural arruma seguidor artificial. Ou alguém sensato acredita que uma pessoa tenha milhões de seguidores? Nem aqui nem na China. A comunicação de massa, impulsionada por robôs, cria cardumes desse tipo meio cretino, meio engraçado que é o crédulo chamado fã.
Assim cresce a percepção de que o poder de tais tecnologias tem o potencial de gerar lucros e outras formas de mais poder. Chocado em ninho de pessoas entupidas de apologia, inunda o mundo de tons de ganância e subtons de caos e facilidades, possibilitando um retorno muito maior de poder e dinheiro do que qualquer outra atividade econômica.
O contexto geral da simbiose política-tecnologia tende mesmo a ser preocupante. Já o específico, que faz com que os agentes socioeconômicos globais tenham dúvidas profundas sobre o mundo que vem por aí, tem que ver com princípios básicos de crescimento econômico em condições democráticas. Cresce a percepção de que os adversários dos princípios que orientaram o surgimento do mundo moderno estão ganhando força e poder.
São variadas as espécies de “malthusianismos” rondando o planeta. Em comum elas têm a visão de um desequilíbrio catastrófico e do simplismo das soluções. Seja o malthusianismo ambiental, o malthusianismo do emprego e do trabalho, o da criminalidade e do terrorismo.
Por malthusianismo entende-se aqui uma preferência por apontar com passividade, falsa lógica e alarde antissocial situações complexas e problemáticas. Reúne os que preferem insistir no fatalismo e na impossibilidade de solução diante do anormal a investir na busca de solução em que prevaleça o normal. Fazer o futuro é estar disposto a dizer que nenhum sistema pode fazer-se independente para levar vantagem sobre o sistema democrático.
Pondo culpa na China, que também apostou na tecnologia, o governo norte-americano inicia forte campanha de coação sobre suas empresas para que deixem suas plantas industriais no exterior e concentrem as operações dentro do país. A percepção é de que a automação e a inteligência artificial acabarão com o emprego. Sem poderem parar o Vale do Silício, os EUA querem parar o mundo, até saberem o que fazer com os traumas sociais desestabilizadores que sua tecnologia acentuou.
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