O SONHO DE BURR
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 28 de dezembro de 2015.
Enquanto políticos e diplomatas continuam com o hábito de ficarem uns perto dos outros falando de coisas que não vão acontecer os interesses práticos da vida avançam sobre mercados psicologicamente mais distantes.
“Você viu que isso estava por vir?”, foi a principal pergunta endereçada a analistas e palpiteiros sobre o reestabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba. O ser-humano, especialmente o desligado, precisa de previsões e vê necessidade de narrativas que antecipem acontecimentos. Há sempre reis magos procurando estrelas guias pelo céu mesmo que não mirem qualquer profeta novo. Cuba vem se preparando há anos para atravessar o oceano. Herdeira da burocracia de esquerda o fazia “a esmo”, misturando tudo à ideologia, seu principal produto de exportação. Do lado norte-americano, o Caribe sempre foi um sonho de ocupação. Desde Aaron Burr, segundo vice presidente da história dos EUA, acusado pelo titular Thomas Jefferson de querer ser imperador do México e do Caribe. É uma vida inteira de amor e escaramuças que não cabe na compreensão de nenhum partido. Tende mais aqueles casos onde é melhor encaixar a realidade à narrativa do que buscar narrar a realidade.
Sem dúvidas, a capacidade de acerto das previsões políticas é comprovadamente limitada. Fim da União Soviética, queda do Muro de Berlin são dois belos exemplos do come e dorme dos futurólogos. Todavia, de fato, o ambiente internacional nunca esteve tão calmo para se reverter um dos imbróglios mais antiquados da política bilateral.
Cuba já estava a algum tempo parada diante do coqueiro esperando para ser novamente pintada. Mas foi Obama o artista que sacou do pincel tornando mais propícia a tarefa. Com sua característica de grande coletor de informações pós-ideológico, limpou o terreno dominado pelos amantes das cores fortes. De forma simples conduziu o fato com a cabeça de um turista, o que coincidiu com o que pensa hoje a maioria dos americanos. Por isso pode oferecer-se a reconciliação, aparentemente de forma unilateral, sem interesse por assuntos antigos. Fidel, por sua vez, há algum tempo já sabe que a maioria dos cubanos sonha também com um lago calmo, mais perto do que Miami, que também possa nadar.
Diferentes presidentes americanos tentaram restaurar as relações com Cuba. Para além do flerte, algumas tratativas foram bastante sérias, mas as conversas sempre afundaram normalmente por bombardeios de cubanos, vindos de ambos os lados do Estreito da Flórida.
A oferta graciosa de Obama, refletida desde seus primeiros passos na Casa Branca, deve ser celebrada também como vitória dos irmãos Castro, para poder ter substância. Para isso precisa de um sinal de Havana a respeito da amplitude da mudança. O melhor exemplo de reconciliação com os EUA de um antagonista comunista é o caso da China. Desde quando formou a parceria só fez enriquecer e se tornar cada fez mais poderosa. Com Cuba a situação é diferente. Porque ainda que com uma economia muito frágil, o governo cubano tem um status político inflado. Estará ou não disposto a fazer um ajuste de relevância política para baixo ?
Afinal, a respeito do isolamento de Cuba, sempre se brincou que com um inimigo como os Estados Unidos o regime castrista não precisava de amigos para se sustentar. A mística da revolução legou uma posição geopolítica única para a ilha. A ausência de uma embaixada americana é balanceada pela presença de uma representação diplomática internacional que é bastante desproporcional ao tamanho do país e de sua economia. Por amizade ou oportunismo, por Cuba passam assuntos e circulam interesses importantes não só para o jogo latino-americano, mas para toda uma agenda de temas subterrâneos e “místicos”. Por essa lógica, a reaproximação entre os dois países é algo que direciona Cuba para novos papeis na cena internacional.
É antiga a ideia de que todos tendem a considerar seus sucessos fruto da própria capacidade e o fracasso culpa de eventos além do nosso controle. Se tudo dependesse de meras questões geográficas, de complementaridade e proximidade, a reaproximação com os EUA pode, de fato, trazer riqueza à ilha. Mas não é possível ter certeza. Tudo vai depender muito mais da forma como se dará o entrelaçamento institucional entre os dois rivais que se acertam. A revolução ocorreu justamente por mãos insatisfeitas com o velho relacionamento que trazia dinheiro para a ilha, mas afrontava a dignidade do seu povo.
No momento é hora de superar o problema que é saudar o anúncio da reconciliação como vitória unilateral de Washington ou de Havana. Circunstâncias são mais do que provas suficientes. Se por um lado os EUA não têm nada a perder falando muito, Cuba não tem nada a ganhar falando menos.
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Paulo Delgado é sociólogo.