O tempo e o vento
O Estado de S. Paulo – 13 de fevereiro de 2019.
Se quer entender bem um assunto, vá devagar. Evite a fúria das redes sociais. A pessoa mal conectada é uma potência decrescente. Há mais de 48 trilhões de páginas publicadas na internet por ano. A maioria é zombaria e puro veneno. Muitas perturbações do espírito dominam a mais tecnológica forma de controle pessoal. Seu papel é aumentar a assimetria do poder, colocar a pessoa numa bolha para vender seus acessos egoístas, radicalizar o usuário para impor um produto, acumulando notícias para dissipar a verdade. Ela customizou o caráter, deu potência ao insulto, acabou com a transparência dos atos humanos.
Um jogo de manipulação que explora ansiosos, impõe notícias fora do contexto e faz tolos terem seguidores. O idiota online, que só presta atenção no que chama a sua atenção, é um verbete falso. Como alvo do modificador dos outros, seguidor-seguido, engajado no mundo digital você não tem credibilidade, tem classificação. Viciados em aparelhos eletrônicos tornaram-se aplicativos. O conectado é sempre plataforma de alguém.
A velocidade das redes sociais é um contrassenso: se tudo fosse um sufoco e pudesse ou devesse acontecer de uma só vez, não haveria tempo, nem vento.
A internet é uma máquina de isolamento e depressão. E por falar nisso, a saúde mental também. Muitos jovens têm medo de dormir. Quantos pais não podem descansar. A sociedade pressiona o governo para internar, marca da cultura do abandono. E nesta dinâmica de legitimação/deslegitimação saiu a última resolução do Ministério da Saúde com críticas a decisões antigas na área da saúde mental. A forma, que pretende esquadrinhar o arcabouço da política do setor, provoca um confuso debate que mistura hospital, droga e nova hegemonia política.
Infelizmente, o texto não separa o debate sobre a doença mental do calor que envolve o usuário de droga. É certo que a realidade é móvel, e com demanda social não se brinca. Os hospitais psiquiátricos agonizantes ficaram atentos aos novos ventos quando a política nacional de enfrentamento do crack e outras drogas, uma urgência e emergência, se valeu da força política das igrejas evangélicas para se tornar, por meio das comunidades terapêuticas, um braço da reforma psiquiátrica. Conexões legítimas, embora forçadas pela política dos tempos da crise e pela queda do confuso governo de esquerda, lideradas à época por seus prestigiados ministros da Casa Civil e da Justiça. Uma governante sem capacidade de formular claramente nada fez a saúde mental virar moeda de troca política. Foi aquele governo ruim que enfraqueceu os fundamentos da reforma. Ouvia-se um “fora Valencius”.
Não vejo, assim, sentido de a resolução desconhecer sua própria história de corresponsabilidade política, pois o que temos agora é uma adaptação híbrida, iniciada antes do impeachment, a Lei 10.216/2001. Concordo que, se a terapia é psicossocial, é certo envolver o Ministério da Cidadania no viés do cuidado dos usuários de droga. O retrocesso é outro: é a Saúde convidar à mesa um interlocutor antiquado que é o hospital fechado, mesmo dispondo da ala psiquiátrica no hospital geral, terapeuticamente mais correto. O tempo dirá – a história é mais forte do que o vento da política. Estão exumando um fracasso institucional e clínico.
O texto evita a discussão cara à mais moderna psiquiatria mundial que é a busca do cuidado em liberdade, essencial para acolher o paciente-doente-cidadão, sua autonomia e a resolutividade da qualidade da sua vida e de sua família. É um atalho evitável ofertar um mercado de enfermos financiado pelo governo. Onde o Caps funciona não há crise no território. Tenho muitos amigos nos dois campos da polêmica, respeitados profissionais em todos os partidos, que não contestam que a ética do cuidado em hospital é largamente superada pela ética do cuidado em sociedade. Assim decidiu a geriatria, assim faz a boa pediatria. A internação compulsória é sempre exceção e não precisa aparato hospitalar. Não vejo sentido em desqualificar a história do modelo sanitário só para ressuscitar o dogma hospitalar de um setor arcaico incapaz de cuidar bem do sofrimento psíquico: doença, bactéria, droga, leito, isolamento, esse é um roteiro equivocado para tratar uma doença que não é contagiosa.
Quando não vislumbramos a existência de um capitalismo compassivo e são frágeis as rédeas do Estado diante da pressão do mercado de doenças, a medicina é de matar. Ao definir o financiamento de hospitais psiquiátricos o texto aponta, em linguagem dissoluta, para o interesse em “mudar o procedimento faturado” e melhor definir contabilmente para onde os corpos e as almas em crise devem seguir codificados. Ora, todo doente tem um perigoso vizinho: a insensibilidade do sadio, indiferente ao tempo de guarda de refugos sociais irrecicláveis.
Há no texto um tom, desnecessário, de ofensa à honra de gestores públicos desde os anos 1990. É leviandade, uma fraude sem dados, dizer que “a política de saúde mental dos últimos 20 anos é responsável pela superpopulação das prisões; pelo aumento das taxas de suicídio; pelo abandono das populações de rua; proliferação das cracolândias; morte dos dependentes químicos; pelo aumento do afastamento ao trabalho”. É de lascar, alguém assinar, em nome do Estado, uma agressão pessoal dessa ordem.
Pessoas adoecidas por razões psiquiátricas não são mutilados neurológicos. Fiquei espantado com o uso de tabelas e escalas de doenças coronarianas de submetidos a revascularização cirúrgica para definir planos terapêuticos em portadores de transtorno mental. É assombroso anunciar a oferta de procedimentos da complexidade tecnológica da eletroconvulsoterapia sem ponderar sobre o imaginário negativo que cerca o eletrochoque.
Ninguém será mais poderoso do que a natureza, tampouco agradará a toda a sociedade, nem vai conseguir deter a debilidade do corpo. A pregação política deve estar à altura da realidade, sem queda para a autodestruição, como se vê nas redes sociais, uma novidade entupida de incompreensão e de maldade.