Os Franceses
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 18 de março de 2012.
Tudo na França é abstrato e concreto, uma mistura de sal e doce, humor e antipatia, erudição, popularidade, grosseria e sofisticação que às vezes é duro não conseguir, na frente de um parisiense, arrancar com charme as patas de uma lagosta ou dizer que não entendeu Roland Barthes. Imagine os franceses em ano de eleição o que acham uns dos outros!
Uma das perguntas mais emblemáticas da campanha e que demonstra a orgulhosa psique do país procura saber até que ponto o candidato tem ou não “estatura de presidente”. O chefe de Estado ocupa o ápice de uma rígida hierarquia com a qual o povo está muito bem acostumado. A França mantém encucada a ideia passada por De Gaulle de que ela precisa de um líder de qualidades invejáveis para ser respeitada. Sintomaticamente, nos EUA, que também estão às voltas com sucessão presidencial, a pergunta chave é com qual dos candidatos o eleitor preferiria tomar uma cerveja.
O principal objetivo dos políticos franceses no momento é demonstrar quem é capaz de proteger ao máximo a “França Histórica”, sendo mais ou menos intolerante em relação às minorias étnicas e religiosas. A campanha caiu na armadilha do discurso conservador de salvar a Europa dos estrangeiros, cada vez mais atacados. Dois terços dos franceses acham a campanha desinteressante, mas ai de quem não lhes der atenção. Extremamente severos com seus políticos, além da hierarquia, gostam de autoridade e disciplina.
Sarkozy insiste em afirmar e focar uma imagem viril de si mesmo. Ganhou assim a eleição passada, governou assim e quer permanecer no Palácio do Eliseu como a personificação da “França Forte“, seu slogan de campanha. Com isto, busca atingir seu principal adversário, François Hollande, como alguém fraco. Hollande, um tecnocrata de baixo carisma, sofre com a certeza professada de que se Dominique Strauss-Kahn, o patético Don Juan do FMI – pilhado em confusão sexual num hotel francês em Nova York -, não tivesse pisado na bola, ele seria o candidato do Partido Socialista com chances certas de vitória. A posição de segunda opção em relação a Straus-Kahn é bem incômoda para o favorito, que sempre é chamado a defender o preferido proscrito.
Como se isso não bastasse, há supostamente um acordo tácito entre alguns líderes europeus (incluindo a chanceler Merkel) para boicotar a campanha de François Hollande. O socialista tem mesmo sido ignorado quando passa as fronteiras do país. E, ao defender a aplicação de 75% de imposto para quem ganha mais do que 1 milhão de euros por ano, o candidato de esquerda joga para a plateia, ao mesmo tempo que mina sua viabilidade. O Le Figaro, tradicional jornal de Paris, que é da família Dassault, de bilionários construtores de avião, e 100% sarkozysta, acusa Hollande de querer a expulsão dos ricos do país. Também, o candidato do PS é acusado de pretender implantar uma “depuração” nos altos quadros da administração pública, gerando descontentamento neste meio alegadamente muito conservador.
Do outro lado, Sarkozy tem tido dificuldades para fazer campanha nas ruas. É insistentemente hostilizado pela confusão de notícias negativas que produziu durante seu governo, tanto em relação à política interna quanto à política europeia e para Oriente Médio. Onde buscou ser protagonista aumentou a intensidade do atrito político. Para se recuperar, promete diminuir o número de estrangeiros no país, exige fronteiras fechadas e ameaça sair do Acordo de Schengen, que assegura livre circulação de pessoas dentro da Europa. Meio oportunista, abraça as bandeiras da candidata de extrema-direita, Marine Le Pen, que vem logo depois dele nas pesquisas. Meio chantagista, transfere para o eleitor seu destino: anuncia que, caso seja derrotado, deixará a vida pública.
O conservadorismo dá o tom da eleição até aqui. Tal retórica tem sido levado tão a sério que duas semanas da campanha presidencial foram dedicadas à discussão sobre os açougues do país. O mote foi a tresloucada declaração da candidata de extrema direita de que toda a carne vendida na Ile-de-France (equivalente, no Brasil, ao Distrito Federal) é halal, ou seja, abatida de acordo com o ritual necessário para ser consumida pelos muçulmanos. A campanha de Le Pen vive de criar polêmicas conspiratórias como essa, levadas à frente por um Sarkozy que sabe que precisa do voto dessa direita radical para chegar bem no segundo turno.
Fora a mise-en-scène dos candidatos, comum a qualquer eleição, é difícil imaginar alguém governar como faz campanha. A eleição francesa reage às mudanças no mundo. E são elas que andam preocupando os indiferentes eleitores franceses.
Paulo Delgado é sociólogo. Foi deputado federal.