OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA
Para o filósofo Karl Popper a ciência moderna nasce da reconciliação entre os conceitos de que “tudo muda” e de que “nada muda”, dois grandes paradigmas formulados pela mais antiga tradição da filosofia grega. Sendo assim, é pela constatação e busca da permanência, dentro do fluxo do movimento, que a racionalidade progride. Popper, exemplo de uma das mentes de originalidade mais clara e consistente do século XX, talvez se surpreendesse, contudo, com a curiosa sabedoria prática que brota da cabeça dos líderes políticos em certas épocas. E o que a filosofia considera uma espécie de verdade universal, a política dá um jeito de fazer um benefício particular.
Descendo do céu filosófico grego para a mais barulhenta realidade da política, um livro, a princípio sem maiores pretensões, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, trouxe a brilhante formulação de que para que as coisas permaneçam como são, elas precisam mudar. Ali a especial lucidez de Lampedusa concilia, a seu modo, o princípio filosófico com a gestão política da sociedade.
Feita essa “elevada” introdução, passamos ao chão onde pisa e apoia Donald Trump. Figura inevitável do momento, arranca dos donos dos meios de comunicação dos EUA, sem cerimônia, a confidência de que “Trump é ótimo para os negócios”. As pessoas adoram acompanhar o que ele faz, falar dele, ouvir e ler a seu respeito. Tudo, mais ou menos bem, se fosse apenas um show televisivo, desses que distraem porque dão folga forçada aos neurônios. Mas não, a figura polêmica compete, com vigor, pelo cargo e poder de presidente dos EUA. Como dizem os internacionalistas democratas, no contexto das últimas décadas, diante da força do Tio Sam, todo mundo deveria poder votar nas eleições americanas. “Deixa que eu chuto” parece dizer Trump, se valendo, oportunisticamente, da atual situação de inércia da sociedade americana, por conta dos excessos de seu próprio sucesso. Competirá, lembrando a história, com a ex-primeira-dama Hillary Clinton, de carisma meio nerd, que sustentou a honra do marido quando o mundo conservador americano o levou a impeachment, não aprovado, por descontrole da libido no Salão Oval. Os EUA, não se davam conta, ainda, que o verso provocador de Lennon – a mulher é o negro do mundo – impulsionaria, subjetivamente, a eleição de Obama, enquanto esperava mais um pouco para aceitar uma presidente do sexo feminino. Agora, mais uma vez, Hillary cobra, do globe-trotter Bill Clinton, a fatura definitiva. Só que, em tal contexto, Trump virou o novo e, por isso, preocupa. A probabilidade maior é de que não consiga ganhar de Hillary, que atende bem a democratas e republicanos, a financistas e progressistas. Todavia, é Trump e não Hillary, que representa a invariância dentro do fluxo de movimento atual, mais forte em direção ao futuro. Tal situação pode se agravar porque estamos na era do líder vilão, que consome a sociedade com sua compulsão para o poder. E Trump vem, a seu modo, narrando a mudança meio de costas para a estabilidade geral.
Se for assim, a eleição buscará valores em épocas sombrias da vida social moderna, como a construção de um muro a separar pessoas por cultura, riqueza, nacionalidade. Ora, o conceito de liberdade atingiu seu ápice na compreensão humana em muitos países, mas ainda é frágil no mundo. Em tal contexto o problema surge onde a liberdade paira acima dos interesses dos líderes que se destacam.
E o que fazer com a constatação dessa maré Trump? Ora, voltar a pensar na importância daquilo que o próprio Popper chamou de a sociedade aberta. Trump parece inimigo de tal construção. Mas é também fruto dela. Porque Trump tem a perfeita noção do medo humano que paira no ar, através dos tempos, potencializado por governos fracos e indiferentes à vida cotidiana do cidadão comum.
Temores esses que alimentam campanhas políticas em todos os países. Líderes como Trump, conscientes ou não, são cada vez mais um parafuso solto na construção da sociedade contemporânea. O humanismo ameaçado por posições sectárias, a incapacidade dos governos moderados de enfrentar as emergências e as crises, alimentam a desconfiança sobre o sistema político. Todavia, a posição fundamental para se entender o presente, o passado que não passa e o futuro que dás poucos sinais que chegará melhor para o mundo, continua a mesma. Fortalecer a autonomia do cidadão, garantir sua educação para o civismo e o trabalho produtivo. E nunca passar a mão na cabeça de governantes que levam o povo à frustração e ao desespero.
Hillary e Trump, liberal ou conservador, queiramos ao não, é a mais previsível síntese atual da moderna sociedade norte americana. Uma sociedade de espetáculo, aberta inclusive aos seus inimigos.
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Paulo Delgado é sociólogo.