Os mandarins

Estado de Minas e Correio Braziliense – 1 de abril de 2012.

O agitado, sofisticado e relativamente jovem líder político Bo Xilai, ex-Ministro do Comercio e Secretario Geral do Partido Comunista (PCCh) de Chongquing, cidade de mais 30 milhões de habitantes, foi comido pela intriga.  Destituído do seu cargo pela alta burocracia do PCCh, viu virar fumaça sua pretensão de governar a China. A estratégia de Pequim é clara: enquadrar todos no mesmo figurino e fazer a sucessão no fim do ano, sem muita expectativa ou confusão. Há tempos não se expurgava alguém tão alto na hierarquia do Partido, muito menos com coletiva à imprensa.

O motivo do afastamento é a popularidade de Bo,  baseada em discursos irados contra a corrupção e defensor das tradições culturais vermelhas, inspiradas em Mao Tsé Tung, contemporâneo e colega de seu pai.  Por isso foi alguém bem alto da cadeia de comando a mandar o recado punitivo: coube ao Primeiro-Ministro Wen Jiabao chamar  para si  a responsabilidade pela punição, numa atitude  bem rara na política. Informou claramente aos chineses que não quer líderes populistas dirigindo o país. Os chineses conhecem bem o pensamento revolucionário de Mao, especialmente o que dizia que o poder político nasce do cano de uma espingarda. Para evitar qualquer nova “revolução”, atrapalhando a prosperidade atual, buscaram outro pensamento pragmático do velho líder: a crítica deve ser feita a tempo; não deve se deixar levar pelo mau costume de criticar só depois de consumados os fatos.

A cúpula não quer na direção do país alguém politicamente forte e com um discurso que inflame as pessoas. O crescimento econômico das últimas décadas fez aumentar a pressão por reformas políticas, sociais e culturais num país de forte tradição imperial. O que os moderados querem é uma transição política sem “revolução cultural” ou apelo às tais tradições vermelhas, que podem sair do controle.  O poder tem que estar mais ou menos diluído sem a necessidade de líderes carismáticos que podem fazer o país entrar em convulsão. Os nove membros do Comitê Permanente do Politiburo querem manter o modelo do desenvolvimento econômico com mudanças políticas seguras e não personalistas. Há muito poder em jogo num século que já se vislumbra como século da Ásia e isto não funciona com alguém muito inflamado e inimigo da economia de mercado.

Embora Spinoza não seja um filósofo asiático, os mandarins vermelhos sabem que o dever da serenidade acompanha toda explicação ou atitude fundada na razão. E o que eles têm pela frente, se quiserem de fato a liderança  mundial, é mais do que uma grande marcha.

A China tem que ter mais credibilidade nos seus negócios com o estrangeiro e diminuir os atritos comerciais que tem com o mundo todo. Precisa aumentar a confiança mútua entre seus vizinhos asiáticos e ampliar a participação de sua gigantesca população nos benefícios do progresso. Precisa também preparar-se para os efeitos da mobilidade social e o maior poder de reivindicação civil, natural a toda sociedade que se torna mais rica e desenvolvida.

Há meses uma inovadora forma de “campanha” à chinesa opunha dois grupos dentro do país, cada qual com seu modelo de desenvolvimento. Um mais moderado e reformista ao sul, vizinho da moderna Hong Kong, outro no interior, mais próximo de Sichuan, onde se concentrou o saudosismo do estatismo socialista. O expurgo de Bo Xilai é a expressão mais forte da reação contrária ao modelo de capitalismo autoritário e revolucionário desenvolvido na gigantesca cidade onde ele era o chefão. Sua queda não significa a dispersão total do seu grupo ou o desaparecimento das ideais que defende. Ele ainda conta com franca penetração entre os militares e larga simpatia popular. Simpatia cativada pela máquina de propaganda que sempre festejou Bo, até dias atrás.

Desde a ação do bureau político que calou a voz desse grupo, a cena política chinesa está em suspenso. Caso os mandarins de Beijing consigam assentar a poeira “harmoniosamente”, veremos o grupo mais pró-reformas, que aplica seu modelo no sul, em Guangdong – cujo Secretário Geral é o moderado Wang Yang –  ser referendado como o bom caminho daqui para frente. A China encontra-se numa encruzilhada histórica, despedindo-se da velha geração que fundou a dinastia do partido vermelho. E a cúpula quer fazer a transição por aclamação e confirmar a direção já escolhida com razoável unanimidade.

É difícil em política a dissecação ética daquele que não presta. É mais fácil buscar entender porque algumas pessoas não prestam para os lugares  que prestam serviços ao poder. Os chineses são lendários farejadores de temperamentos imediatistas e zelosos usuários do tempo. Sabem que os povos a quem o passado não ensina, o futuro os ameaça.

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PAULO DELGADO, sociólogo. Foi deputado federal.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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