Paraiso perdido
O Estado de S. Paulo – 13/09/2017
Um secreto acordo, em secreta comunhão, prospera. A facilidade de transgredir e infringir leis, espécie de osmose em organismo combalido, é a prévia manifestação do delito que marca o período. Curvado à adulação e ao cifrão tudo vem como uma escritura que atraí quem já tem em si o germe desse temperamento. A ambição é uma intuição, o interesse estrutura a intenção. O anjo cobiçoso usufrui do paraíso a qualquer preço. Beneficiários de dádivas excessivas não veem víboras na lisonja, convencidos que o carisma que os protege é o de um rei.
O nome da dinastia é apelido. Nada freia sua mania de honorários e autopercepção das coisas. Oferta de intimidade a quem não faz questão de identidade formou público adequado à sua má percepção da realidade. Não foram obrigações do poder ou sorteios impessoais que azedaram. Foi um estilo de oferta inconfundível que abriu fendas na conciliação nacional e cuja prova do encontro é o ávido sigilo e o insulto que ameaça toda testemunha. Somado à soberba com que o rei largou no cadafalso seus amigos.
O estranho familiar – o beneficiário da aura e da névoa do período – é ele a prova, a saída do enigma. Mas enquanto a conduta pessoal do julgador não contiver vigor igual a honra; não for a mesma em todas as instâncias e nem à revelia da balança em que pesa seus amigos, não haverá, para acusado, medo de punição, nem glória em reconhecer a transgressão. E não havendo medo do erro, ou orgulho de fazer o certo, não haverá arrependimento.
O sagrado negativo do período é o desfrute do afeto do poder, sem exigir vigor ao seu comportamento. O privilégio vê por fora o que a pessoa não precisa ter por dentro alimentando o sucesso indevido.
Que pare de escorrer a náusea de maus juízes, dissimulados procuradores, podres políticos, poderosos acusados. Abominavelmente, venci, não é boa sina para ninguém.
Sem nenhum imporem o caos juntou tentadoras perversões. A desordem ordenou e a ganância se uniu. O maligno concedeu familiaridade ao presunçoso, garantiu preferência ao poder estupendo do dinheiro. Tão alto erguido e logo cercado de submissão, impôs quitar sua dívida com favores, desprezando a gratidão gratuita do convicto. Não se deu conta que para quem é doente de dinheiro, o que parece um inferno é quase um céu, até deixar de sê-lo.
E foi quando deslumbrados trapaceiros, do lado da lei e do delito, começaram a fraudar a si próprios que o procedimento do pecado se impôs e envolvidos se enrolaram.
Com a moral recurvada do perdedor nato a pátria assiste seus filhos poderosos desovarem répteis sobre a honra da nação. O puro unido ao impuro em forçosa convivência, sem que alguém dê um basta à transgressão dos influentes. Os prediletos de toga se fazem de ingênuos e continuam, de degrau em degrau, com seus pensamentos e palpites, a descer, obedientes, voluntários, à jaula de lobos vorazes, persuasivos, cravejados de compromissos.
Tudo escapa a Deus que tudo vê e o mal da terra se universaliza na última dinastia popular. Sem estorvo, um rei do improviso, que tudo pode, se uniu a uma regicida improvisada, que nada deve, para gozar da doçura de impor sua maneira obstinada de agradar. Sem refrear seus impulsos deram precedência à ambição e aos seus trocos. A linguagem e a conduta pública se arruinaram.
Burlando a boa-fé do mundo culto o pior foi oferecido como certo. Desdenhando da capacidade humana de vencer fez a grana pública parecer o fim da boa vida. Testando a gloria de esmagar o pobre com o Leviatã, feroz manipulador, anunciou que renda doada era classe conquistada. E o que parecia calor de cobertor, tornou-se febre. O cuspidor de fogo fez filhotes. A fanfarrice tomou conta da nação jactando de quem sabe o mal que é direito servido como esmola.
Paixão pura sem razão, o anjo do mal se agarrou ao nosso tempo e pregou na política a queda para o abismo; fez o mal e a mentira de uma vez por todas. E rastejou como serpente para dentro do palácio dos acusadores iluminando o obediente procurador de dupla face. Escancarou na casa da justiça o compadrio agropastoril do feio traidor, do mal acusador e do fraco relator, zombeteiros frios como a noite unânime.
Exposto o dogma do período, de que pela mão de incautos governantes é difícil alguém sair da escuridão para a celebridade, o fluxo da osmose inundou todas as células. Tirou do parlamento o senso do dever, impôs às duas casas, do promotor e do juiz, um porte cambaleante de quem não anda bem. Tal pandemônio os levou a dar-se ao espetáculo, como se fossem manequins.
Vendo tudo falso, postiço, o pai da fraude, mandou Baco lavar, e cuspir aos poucos, a hipocrisia. Mas nenhum tempero de tal culminação afeta o padrão de decisão imperfeita que brota de poder encurralado, onde seus membros não dialogam temendo conhecer do outro a confidência.
Enquanto isso, se esquecendo de levar em conta a carta magna seguem rendidos à mania de dar entrevista ambiental, internacional, policial, racial, sexual. Só pensam em serem bons, não conseguem ser legais. Esculhambados por ébrios sedutores convocam com cuidado o bon-vivant. Algemas de pelica são usadas, pantufas alisam pisos de casas visitadas. Tudo isso para proteger o dique, represar a osmose e manter seca a mão suja que autorizou a inseminação artificial de tudo que virou crime.
As trombetas avisam: não veja nosso povo alienado, é o poder que se anestesiou de vez e mudou a natureza da admiração que tem por seu papel.
Ao perceber que é filmado, um juiz, procurador ou um político, não é mais eficaz e verdadeiro. Seu gesto é uma espécie de mentira demonstrativa, como alguém que lava a louça sem olhar o prato. O juiz julgando na TV é um objeto desarrazoado. Esvanecido, vive o langor de ser visto pelo tempo concedido à consistência da manteiga.
Será árdua a regeneração em uma terra onde a justiça tem segredos e despacha em botequim. E teremos perdido o paraíso onde essa gente consegue ser elite.
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PAULO DELGADO é Sociólogo.