Paulo Delgado: “O Parlamento tornou-se mais importante que o Executivo”
Capital Político – Por João Bosco Rabello
Professor, sociólogo e cientista politico, Paulo Delgado (foto) foi constituinte de 1988 e exerceu mandatos de deputado federal até 2011. Atualmente é co-presidente do Conselho de Economia Empresarial e Conjuntura Política da Fecomercio / SP e articulista dos jornais O Estado de São Paulo, Correio Braziliense e O Estado de Minas, nestes dois últimos titular de colunas sobre política externa.
Nessa entrevista ao Capital Político, ele aborda o momento brasileiro, o impasse econômico, o esgotamento do modelo político-administrativo do país, seus reflexos internos e a influência das mudanças globais nesse processo de transição.
Capital Político – O governo eleito propôs-se a uma ruptura com o modelo político-administrativo do país. Mas as dificuldades parecem maiores do que previu e a economia permanece estagnada. O noticiário reflete uma babel ideológica. O que acontece?
Paulo Delgado – Ainda não chegamos ao risco extremo, mas o país precisa encontrar o círculo virtuoso a partir de uma visão de realidade e não de torcida. Nosso desafio é chegar o mais perto possível de reconstruir, com isenção e crítica, a lógica e o entendimento dos fenômenos do dia a dia, na política e na economia. Especialmente porque estamos sofrendo, de forma sistemática e recorrente, com um desempenho aquém do esperado da economia. Uma surpreendente falta de energia da economia brasileira aliado ao consenso de que é mau o funcionamento da macroeconomia e acrescido de dificuldades incomuns ao início de mandato pelo contínuo auto-desgaste a que o presidente se impõe, depois de vários anos de inflação controlada, mudanças políticas e calendário eleitoral respeitado e vitória não contestada. Precisamos estar em condições de responder rapidamente às demandas reais do país e não desprezar, nem considerar exagerado por parte das empresas e agentes econômicos, a preocupação com a necessidade de introduzir preparativos de proteção e cautela contra a vulnerabilidade que estamos vivendo. O governo opera a imprevisibilidade como virtude e parece supor que controla até o erro de cálculo. Estamos vivendo um início de governo não linear, com tendência a um desequilíbrio programado, mas ainda não sabemos claramente qual método, e sentido, organiza essa dinâmica caótica.
CP– Não há razão, então, para otimismo com esse ciclo que se inicia?
Bem, neste mundo de incerteza e complexidade, onde é necessário mudar a maneira de pensar e desenvolver novas intuições e instintos a todo tempo, devemos trabalhar mais com concepções probabilísticas do que com modelos ideais. O que mais importa é o fato, o dado obtido, sua análise e a busca mais próxima da verdade. É evidente que também estamos autorizados a manter o otimismo histórico, mesmo na divergência de análise e principalmente se os desafios aumentarem.
CP – Em termos de conjuntura, estamos em um cenário de modelo estrutural esgotado, persistente estado estacionário e crítico o suficiente para dar ano de 2019 como já perdido?
Este cenário existe como diagnóstico do momento e como possibilidade de um agravamento, se baixos índices de confiança evoluírem para uma crise de esperança, com a consequente insegurança estratégica, um pessimismo que bloqueie investimentos. Há um mundo novo em ebulição e nada destrava um país desanimado e debaixo de tanto ruído.
Só para dar um exemplo de que estamos perdendo tempo com a imaturidade política prolongada chamo a atenção para dois fatos que se destacam: primeiro, todas as políticas públicas que caracterizaram o Estado de Bem Estar Social nasceram em cima do vínculo de emprego. Hoje, no mundo volátil da tecnologia e da velocidade – os fatos mais ostensivos do mundo moderno – é preciso reimaginação para lidar com a incerteza e, ao mesmo tempo, oferecer proteção ao trabalhador no mercado. Já é hora de se pensar em alguma renda básica não contributiva, um benefício mínimo para qualquer um, que proteja o indivíduo, não o emprego. E, segundo, ativos compartilhados, gratuidade, acesso universal facilitado e usufrutos diversos são mais atrativos do que a aquisição de bens no mundo atual. Como a comunicação à disposição de todos não passa pela estrutura de custos tradicionais, ela contém um desapego que revoluciona costumes e altera o comportamento dos consumidores. As ferramentas digitais estão provocando mudanças sociais, alterando a base do conceito de satisfação/progresso e mesmo da nossa cultura erigida sob a égide do direito de propriedade. O uso comum e gratuito de um bem, a facilidade, essa qualidade de fazer sem dificuldade, muda o conceito de bem de capital e de produção de mercadoria. Trata-se de uma mudança refletida no mundo dos bens de consumo que contém o risco da extinção ou escassez do trabalho e do emprego, como estamos vendo. A União europeia já começa a enfrentar o problema. Como hoje as relações humanas se fazem por aparelhos e tais ferramentas tecnológicas se tornaram bens sociais deveríamos compartilhar seu lucro, já que partilhamos seu uso. E se somos sócios do que outro é dono, isso inclui rever o conceito de patente.
CP – No curto prazo, a reforma da Previdência é uma porta de saída para o país?
PD – A combinação de estagnação econômica em ambiente de revolução tecnológica, com baixos indicadores sociais, não se resolve apenas com aposta única. Agora, se trata de evitar que o país possa quebrar, conter a explosão das contas públicas, inviáveis em nação onde o princípio do “direito adquirido” é visto de forma estática como se fosse virtude constitucionalizar políticas públicas conjunturais, remunerações e privilégios, sem levar em conta a ideia do equilíbrio orçamentário e da solidariedade e da justiça para todos. Estamos em um país onde 47% da renda previdenciária pertencem aos 15% mais ricos do regime próprio dos funcionários públicos e onde um diplomata ou um juiz iniciam a carreira, antes dos 25 anos, recebendo mais de 6 mil euros de salário. E já pensando em ficar 40 anos aposentado, com salário integral e igual ao da ativa. Não dá outra: nossa alta posição no PIB mundial está anos- luz da vergonhosa posição que ocupamos no ranking de desenvolvimento humano. Enfim, esgotou completamente a capacidade do governo de absorver e sustentar dívidas de custeio que são o retrato de desigualdade social dentro da nação.
CP – Mas a reforma da Previdência, por si só, já tem potencial desestabilizador suficiente para tensionar qualquer governo. Não lhe parece que este governo amplia essa tensão com uma pauta paralela concorrente?
PD– O governo, visivelmente, não quer produzir estabilidade política e um fato notório é que, nem mesmo a reforma administrativa – MP 870 – que redesenhou o modelo ministerial, ficou sob o controle do Executivo. A decisão de aprova-la foi exclusivamente da Câmara. Com consequências diversas como, por exemplo, retirar o Coaf da Justiça e devolvê-lo à Economia, o que compromete o pleito do Brasil de entrar na OCDE por sinalizar descompromisso com o combate à corrupção e lavagem de dinheiro. Ao carimbar como ideológicas todas as polêmicas o governo aproveita para fazer propaganda de sua baixa capacidade adaptativa, sem se importar em aumentar a desordem. Ou, está movido pela ilusão errada de que pode fundar sua atitude no resultado eleitoral e assim, de qualquer jeito, promover mudanças institucionais, por vias inconstitucionais. O governo bem que poderia conduzir as mudanças econômicas sem produzir ou estimular eventos políticos inconvenientes, mas prefere desafiar o país com sua interpretação simplista da separação dos poderes. Usa a prerrogativa de propor a discussão no Congresso e se retira dela. Convoca o povo para pressionar o sistema político sem atentar para os limites da responsabilidade de um presidente.
Como ninguém tem recursos de poder próprios – e, na selva pluripartidária, os parlamentares ainda não sabem qual incentivo concreto pode existir em se distanciarem do Executivo e manterem a viabilidade eleitoral futura – no curto prazo dificilmente o país recuperará a previsibilidade.
Aparentemente vivemos um jogo jogado sem o jogador principal. Apesar de que a autorização para recriação de dois ministérios para atender parlamentares – Cidades e Integração Regional – ainda que já descartada pelo Congresso, soe como um arrependimento. Com somente 8% do tempo de mandato podemos dizer que há uma realidade institucional nova: para o jogo político o parlamento tornou-se mais importante do que o Executivo. E, para o dia a dia, temos uma governabilidade de quatro cabeças: a vice-presidência; o Ministério da Economia; a da Justiça e o Presidente da Câmara.
Ou seja, como o governo decidiu não ter uma base parlamentar, é mais difícil mapear o poder, pois não há controle ou previsibilidade do que pode acontecer do lado do Executivo. E, conforme recente análise de vocês mesmos da Capital Politico – que são especialistas em qualificar os processos de decisão para empresas -, tendo o presidente saído do controle do leme congressual, quem está propondo o ritmo e o tipo de jogo político é o nível de apoio parlamentar que os presidentes da Câmara e do Senado possam ter. Na Reforma Tributária, por exemplo, o Congresso anuncia, lidera e dá sequência ao debate sem esperar pelo governo. Todas as avaliações na Câmara sobre a dimensão econômica têm viés negativo: retirada de subsídios; concessões e PPPs; abertura comercial; política externa; agenda econômica geral. Retirando a oposição da análise – pelo costume de dar zero em tudo que vem do governo, todos os índices ficam avariados agravando os limites da avaliação qualitativa – ainda assim o viés do que seria o apoio parlamentar ao governo é mais para neutrodo que para um otimista discreto. A pesquisa de vocês autoriza a conclusão de que no momento, quanto de apoioo presidente tenha é menos importante do que saber quanto de força o presidente da Câmara possui ao receber de graça esse poder administrativo de cunho parlamentar.
CP – E também o governo tem problemas internos que podem isolar mais ainda o presidente, não?
PD – Sim, afora o isolamento externo, há sinais de isolamento interno. Apesar da má fama do Congresso, quem está melhor se apropriando do isolamento do presidente é o subgoverno, o mandarinato dos funcionários públicos e cargos de confiança, que podem estar fixando e ampliando o poder da burocracia. Quem quer renormatizar tudo, não gosta muito de desnormatizar nada. Talvez, aí, um dos motivos pelos quais a “carta anônima” do investidor do partido Novo, do Rio, Paulo Portinho, tenha posto de fato o dedo na ferida: a matemática própria de poder da elite do Estado, sua gramática, é que realmente governa o país. O que em nada se justifica estimular conflito entre os poderes e confundir qualquer conversa, pleito ou negociação com conchavo e “velha política”.
É bom não esquecer que foi a Perestroika que, se aproveitando de tanta autonomia para fazer mudança, isolou o presidente, para continuar no poder. A analogia, evidente, não deve ser levada ao pé da letra, mas nãocusta lembrar que Gorbachev foi derrubado pelos altos funcionários de Estado que viraram os maiores proprietários da Rússia capitalista, inclusive seu presidente atual.
O fato, pelo seu tom anti-político, está produzindo mais turbulência no Congresso onde já se fala abertamente em “descontinuidade” do mandato presidencial. Por enquanto pela indiferença do presidente ao debate congressual, mas pode evoluir para arranjos mais ou menos desestabilizadores. Em política não se fala do que não existe. E como na química, se substâncias se chocam, só não haverá transformação, se não ocorrer reação alguma. Não parece o caso.
De uma maneira geral um dos erros da análise política é imaginar que todas as pessoas compreendem bem o que lhes falta, ou que estão insatisfeitas por compreenderem pouco o que acontece. A internet hoje é um grande fator de poder e ao mesmo tempo acomodadora de conflitos. A maioria dos internautas parece satisfeita em vender óleo de cobra, mais do que buscar conhecimento ou qualquer remédio. Quem sonha com uma “primavera árabe” dia 26, torce por ela. Mas, como nem os aliados do presidente andam se entendendo sobre com que roupa sair, devemos ter mais um domingo de outono quente, essa confusão mundial de cidadão-aplicativo e sua visão heroica das ruas.
CP – Mas o que determina tudo isso é mais a estagnação econômica ou erros políticos?
PD – Enfim, quem é o criador do desastre, a política, ou a economia ? Difícil dizer, mas a dinâmica real da economia está se impondo sobre a resiliência insensata da política. Se o presidente quer avançar e abrir mão de ser chefe do governo, deve admitir o princípio dos checks and balances, a forma clássica do controle recíproco entre os poderes. Se não pretende voltar atrás e insistir em conservar ideias confusas sobre o papel da chefia da administração deve enterrar de vez o problemático presidencialismo brasileiro e lutar pelo parlamentarismo. Ou, se de fato, não for nada disso, mas quer precipitar a mudança para valer, é preciso enfrentar o desconforto que é governar em período de crise oferecendo ao país mais temperança e racionalidade para que a nação possa compreendê-lo melhor.
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