Populações em Fuga

Populações em Fuga

Estado de Minas e Correio Braziliense – domingo, 24 de Agosto de 2014.

O mundo aprendeu a viver acima do nível da miséria mas ainda não sabe viver acima do nível de violência. Uma grande contradição se levarmos em conta que a vida já dura mais do que poderiam supor nossos antepassados. A mobilidade social, educacional e profissional permite cada vez mais que os filhos possam ser mais prósperos do que seus pais. A cultura local, geograficamente definida, vai sendo assimilada de forma rápida e mundial sem que ninguém precise sair de casa. Nem Flores, nem frutas respeitam mais países ou estações do ano.

Guerra civil na Síria e no Sudão do Sul, escalada separatista no leste da Ucrânia, caos crônico no Afeganistão, avanço do terror medieval sobre o Iraque, renovada onda de mortandade entre israelenses e palestinos, insurgências religiosas sanguinárias na Somália e na Nigéria, incapacidade de se pacificar a Líbia, banhos de sangue pelo controle do tráfico no México, conflitos generalizados nas montanhas do noroeste do Paquistão… A todos esses, que compõem a lista dos principais conflitos armados declarados acontecendo no mundo, soma-se o estado de forte insegurança nas suas cidades civilizadas. Mas, dentre as variadas formas de guerra, uma de natureza especial se destaca naqueles lugares em que o ódio é direcionado a minorias e grupos étnicos ou religiosos. Produzindo no seu rastro a explosão e o desamparo sem fim dos refugiados.

O último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), aponta pela primeira vez desde 1989, quando passou a ser divulgado anualmente, mais de cinquenta milhões de pessoas forçadas a deixar suas casas por crises humanitárias mundo afora. O equivalente a um quarto da população brasileira. Isso ressalvando que a entidade contabiliza apenas o que lhe é autorizado pelos humores políticos e diplomáticos das nações que regem a ONU. Ou seja, gerando um número oficial inferior ao real. Mesmo assim, alcançou-se seguramente o pico desde o final da Segunda Guerra Mundial.

Apenas as populações desalojadas desde o começo do atual conflito sírio chegam a quase dez milhões de pessoas, das quais três milhões foram forçadas para fora do país. Seja na África, no Oriente Médio ou em outras partes, há um sem número de pessoas escapando para vizinhos menos conturbados, ou resistindo em precários acampamentos montados dentro das fronteiras. Apenas uma minoria tem o luxo de conseguir ir para bem longe das áreas de conflito. A maioria apenas salva a vida e passa a uma subsistência atroz. Em Daadab, na fronteira do Quênia com a conflagrada Somália, está localizado o maior campo de refugiados do mundo. São trezentos e quarenta mil somalis acampados. Metade deles crianças. No desolador cenário, falta comida e sobra insegurança. Competindo em precariedade, os abrigos da ONU no Sudão do Sul não dão conta de 10% do total de mais de um milhão de pessoas que deixaram suas casas para evitar a morte.

Há casos emblemáticos da insegurança reinante, como, por exemplo, o das comunidades afegãs que correram para fora do país ao longo dos vários anos de incessante conflito, indo para o vizinho Paquistão. Agora, junto com paquistaneses, cruzam de volta a fronteira, em busca de uma guerra menos violenta fugindo da que assola o noroeste do país que os recebera, na região do Waziristão.

O quadro caótico tende a piorar. Alarmada, a ACNUR lançou dias atrás uma ofensiva de ajuda humanitária no Iraque. O país, desde a saída das tropas americanas tem visto a intensificação do avanço do grupo ISIS sobre sua região norte. Ali, mais de quinhentas mil pessoas tiveram que deixar suas casas. O bastião das ações do ISIS, expandindo-se por vasta área entre Iraque e Síria, é uma terra com cabeças de inimigos penduradas em postes e apavoradas populações em fuga. O recente vídeo da decapitação do jornalista americano é a face célebre de uma rotina diária às centenas. A situação é tão desesperadora que vale até o impensável: valer-se do sanguinário presidente sírio para derrotar o ISIS. A espiral para realidade cada vez pior está se acelerando na região. Triste rotina: a desestabilização nefasta de poderes nefastos nunca foi garantia de que o bem brotará da terra arrasada.

O ACNUR foi criado em 1951 para assistir cerca de um milhão de pessoas que ainda não haviam conseguido retornar a seus lares após a Segunda Guerra Mundial. De lá para cá o número de pessoas desalojadas na periferia do mundo moderno não para de crescer. Uma demonstração de que, se para conter o assanhamento entre os grandes a bomba atômica cumpriu seu papel, para os desajustes internos entre os pobres as nações poderosas somente observam o rastro de populações em fuga.

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PAULO DELGADO é sociólogo.

 

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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