Presságios
O Estado de S. Paulo – 10 de julho de 2019
Para entender a perda de poder do Estado é preciso mais talento humanista do que habilidade política. De maneira geral, governos usam sua força como oficina de testes para usufruir ou confrontar fatos dos quais com frequência são os causadores. Mas para entender como a sociedade está reagindo a tais iniciativas experimentais melhor mesmo é ampliar o ponto de observação e evitar a depressão e revolta que é viver sob governos ingênuos.
O mundo é da riqueza, das hierarquias e dos criadores. E o povo, ora, o povo nunca esteve tão fora de moda como agora. Estão aí três sistemas sociais poderosos que explicam o rápido processo de mudança a partir da atual revolução tecnológica e da crise do sistema financeiro. Chips & Pounds, dois impérios virtuais em guerra que vão se chocar e tirar do Estado a capacidade de vigiar e imprimir dinheiro.
A tecnologia acelera em ritmo cada vez maior e vem pervertendo tanto nosso sistema de reflexos que sua velocidade já é uma doença. O sistema financeiro, por sua vez, gigantesco e socialmente infértil, será engolido pela criptomoeda como o Uber comeu o táxi.
A tecnologia deu aos bancos um suporte material e um saber extraordinário sobre a angústia dos clientes, mas não lhes deu nenhuma sensibilidade sobre a experiência de salvá-los pela vida produtiva. Se o concentrado sistema bancário não enfrentar sua riqueza enganadora, usando de forma virtuosa a memória que armazena dos seus clientes, será tragado pela degenerescência do dinheiro virtual provocando um Alzheimer na riqueza.
Tecnologia e Moeda são impérios virtuais que se aproveitam do sono dos Parlamentos, anestesiados pelo narcisismo dos selfies e prisioneiros de qualquer Big Data que se ofereça. Notícias não compensam a falta de ideias. A maquinação digital é uma armadilha que consiste em transferir a legalidade de todas as coisas para os que armazenam os meios eletrônicos, fazendo o controle da verdade pertencer ao manipulador de dados.
O mundo está inundado de dinheiro fraco e caro. Dinheiro que se converteu em entorpecente provocando necessidade de antidepressivos. Os bancos não conhecem analogia e acham que nada tem que ver com eles o fato de que nos EUA e na Europa são cobradas taxas para o uso de drogas recreativas em cafés ou oferecidas drogas medicinais em dispensários para usuários. Nada repressivo, totalmente liberal. Se não criarmos abrigos para inadimplentes, ou alguma moeda social não contributiva, o dinheiro não circulará pela massa de excluídos e a mercadoria não mais será comprada pela maioria.
A exclusão social deve ser considerada uma droga e se os bancos não mudarem sua relação doentia com o tráfico de dinheiro, a moeda deve passar a ser tratado pelos sistemas de saúde, e não pelo sistema financeiro. A OMS sabe mais do mundo do que o FMI.
A política, e seu medo estúpido da economia e da tecnologia, infantilizou o papel da luta política, prisioneira do obsoleto estatuto do poder. Tipo de política que não usa nenhuma brecha para propor uma linha de fuga que possa reverter sua impotência diante da violência dos processos tecnológicos e financeiros.
Recomeçou o ciclo do grande endividamento.
A riqueza bancária e a informatização usam as facilidades da política, de direita ou esquerda, para penetrar sem lei nos países que não atravessaram nenhum grande acontecimento da História mundial. Com a concentração, a segurança econômica pressupõe subordinação bancária e não significa liberdade. O crédito imposto, o endividamento, virou um mecanismo de conformidade violento. A Pátria cobriu-se de juros, o nome do dinheiro caro.
A bravura dos que trabalham e produzem a riqueza perdeu aliados para disputas políticas ideologizadas, sem nenhuma ligação com a dor e o prazer trazidos pelo progresso. A alta tecnologia escondeu-se em paraísos fiscais, alimenta hackers, cria empresas virtuais, manipula e desorganiza governos a seu favor.
Enquanto a política não acorda para o problema real que aflige a pessoa comum, que é o novo mundo do trabalho e sua relação com a insegurança pessoal, a boemia bancária, indiferente à revolução tecnológica no mercado de mão de obra, adoece o crédito com o assédio ao necessitado.
A revolução digital e sua interferência na lógica dos empregos e dos negócios mudaram as exigências da vida. O desemprego dos capazes, surpreendidos por habilidades presas ao passado, aumentou a subordinação das pessoas a bancos e a remédios. E é essa prisão sem amigos, a ausência de decisões novas que façam a riqueza circular de forma ampla, mas fruto de algum compromisso coletivo da economia com o trabalho, que contamina a esperança na política. As hierarquias que dominam os interesses políticos não sabem escrever protocolos para que a criação e a circulação da riqueza existam na perspectiva de todos.
A política perdeu a noção de como os bens são produzidos. A convivência com este estado de coisas – veloz, deseducado, atrativo, desconhecido e sugado por juros – domina o dia dos governos. Um mecanismo que desregulamenta nosso futuro, com a perda da esperança no consenso produtivo e na criatividade do trabalho.
Nas crises de sociedades sem comando, as recompensas que ela acaba proporcionando são desproporcionais e descabidas ao extremo. Cresce demais para uns, desaparece para outros. O cerne do desequilíbrio é a predominância de um tipo novo de vitoriosos ousados na arquitetura do poder. A riqueza se concentra nas mãos de alguns grandes criadores de dinheiro “sem fábrica”, aliados aos hipercompetitivos personagens dos negócios midiáticos, políticos e financeiros.
Assim o mundo corre veloz com sua economia oca. Uma energia desagregadora fazendo e desfazendo valores. Sem monitoramento estatal sábio que possa unir riqueza, hierarquias e criadores, adeus, bem-estar social. O custo desse erro tem sido assustador.
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