Pronunciamento na Câmara dos Deputados
O SR. PAULO DELGADO (PT-MG. Pronuncia o seguinte discurso.) – Sr. Presidente, Sras. Srs. Deputados, se os contratos com o FMI exigem que o Brasil honre seus títulos no exterior, podemos pressupor que, quando se trata de títulos estrangeiros no Brasil, as empresas estrangeiras se obrigam a honrar as dívidas com o País – mais ainda se financiadas por bancos brasileiros.
A AES, que deve perto de US$ 300 milhões ao BNDES e, ainda assim, remeteu US$ 300 milhões de lucro para a matriz, nos Estados Unidos, quer agora refinanciar a dívida com o banco estatal, sem rubor e sem rumor.
Em sua coluna no jornal O Globo, edição do dia 28 de fevereiro de 2003, Márcio Moreira Alves desvenda a perfídia na matéria que passo a ler:
“O caso Eletropaulo
‘Cumprir contratos ao pé da letra é coisa para país subdesenvolvido. Nós, executivos de Primeiro Mundo, até gostamos de respeitar contratos, mas quando podemos fazê-lo. Quando não podemos, vamos para o Judiciário, ganhar uns dez anos’. Esse deve ter sido o raciocínio dos executivos da AES na negociação da dívida de US$ 1,131 bilhão da Eletropaulo com o BNDES.
O empréstimo foi feito, em 1998, para a compra em leilão da maior distribuidora de energia do país. Segundo a política então em vigor, combinada com o FMI, emprestava-se dinheiro público a particulares para que comprassem empresas estatais. A AES recebeu em agosto de 1998 um empréstimo do BNDES de R$ 960 milhões e, em 2000, um novo empréstimo de US$ 240 milhões. Como a maioria dessas empresas estatais não produzia nada que pudesse ser exportado, os chamados untradeables, as operações oneram o balanço de pagamentos brasileiros, porque as empresas alienadas continuavam a ter lucros e a remetê-los para as suas matrizes. Após 1998, a Eletropaulo, apesar da sua precária situação financeira, distribuiu dividendos de US$ 318 milhões e remeteu US$ 217 milhões para a AES, nos Estados Unidos. A empresa-mãe, que não faliu, como erroneamente escrevi há dias, teve a sua classificação de risco degradada, passando de investment grade, que é a recomendação de compra de seus papéis, para speculative grade, com viés negativo, que é a recomendação de não comprar. Suas ações, que chegaram a valer US$ 75 cada na Bolsa de Nova York, valem hoje US$ 2,5. É que a AES, que chegou a ser a maior distribuidora de energia elétrica do mundo, teve pesadas perdas com suas aplicações na América Latina e, sobretudo, nos Estados Unidos. A crise de energia da Califórnia, com o conseqüente racionamento, custou-lhe bilhões de dólares. Como nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, não passa pela cabeça de governante algum doar dinheiro público a empresas privadas a pretexto de cobrir prejuízos, porque isso dá cadeia, a AES teve de absorver o prejuízo.
No Brasil, a Eletropaulo continuou a se endividar. Entre dezembro de 1997 e setembro de 2002, seu endividamento passou de R$ 1,1 bilhão para R$ 5,4 bilhões, enquanto a taxa de câmbio, à qual a empresa atribui a responsabilidade por sua insolvência para com o BNDES, pouco mais do que triplicava. Apesar de as receitas da Eletropaulo serem em reais, verificou-se uma concentração de dívida em moeda estrangeira – 71% em setembro de 2002 – com 84% do total da dívida não protegida da desvalorização do real.
Em janeiro deste ano, a AES deixou de pagar uma parcela da dívida com o BNDES e se declarou em moratória técnica (default) para com o banco.
Hoje, o BNDES tomará uma decisão histórica: vai executar as garantias que recebeu pelo dinheiro emprestado.
Acontece que a execução das garantias representará um prejuízo que o ministro Augusto Sherman Cavalcanti, do TCU, autor de um relatório aprovado por unanimidade pelo tribunal, calcula em quase US$ 1 bilhão, ou seja, cerca de R$ 3,6 bilhões. Diz o ministro que, considerando-se as dívidas da Eletropaulo para com terceiros, o prejuízo do banco poderia chegar a R$ 9,5 bilhões. Razão: a única garantia dada ao BNDES foram as ações preferenciais – sem direito a voto – e ordinárias, que correspondem a pouco mais de 70% do capital votante da própria Eletropaulo. Hoje, as ações valem cerca de um terço do que valiam em 1998, quando a operação foi feita.
Por que o BNDES não tenta se ressarcir movendo uma ação contra a AES nos Estados Unidos? Muito simples. Porque os advogados da AES no Brasil eram mais espertos do que os brasileiros. Formalmente, a Eletropaulo pertence a duas holdings que a AES montou nas ilhas Caymam e essas holdings são de papel, não tendo ativos a serem executados.
A decisão de Carlos Lessa, presidente do BNDES, e de sua diretoria de assumir o prejuízo da operação é respaldada pela ministra Dilma Roussef, de Minas e Energia, uma mulher de faca na bota que não teme chantagens, e pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci. A AES, apesar do escrito no contrato de empréstimo, não quer entregar as ações ordinárias que passariam o controle da empresa para o BNDES. Vai discutir na Justiça. No passo em que em que nossos tribunais funcionam e com a escada de apelações que o Código de Processo Civil oferece, a questão pode levar dez anos. No meio tempo, a prestação de serviços a São Paulo, que já está se degradando por falta de investimentos, pode degradar-se muito mais e criar uma situação de blecaute permanente, como a que existia em Belo Horizonte antes de a concessionária americana ser encampada.
País subdesenvolvido é assim mesmo: feito para ser roubado pelos países ricos. Bem que alguém já escreveu: ‘Pobre Brasil: tão grande e tão bobo’.”
Era o que tinha a transcrever nos Anais da Casa, apelando para os escritórios de advocacia no Brasil e nos Estados Unidos e aos brilhantes advogados que lhes são associados no sentido de que evitem dar circulação a essa privatização do Direito, que, a peso de ouro, produz a manutenção privatizada da democracia.
A irritante jurisdição dos guardiões do direito dos fortes faz da doutrina do Direito uma tragédia do nosso tempo. É energia que não produz luz, somente desilusão e calor.