Psico-história de líderes
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 18 de Maio de 2014.
“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”. Fugindo das guerras que incendiavam a Europa 100 anos atrás, Clarice Lispector veio da Ucrânia com os pais para o Brasil. Voltou à Europa após a Segunda Guerra Mundial casada com um diplomata brasileiro, de onde escreveu uma carta à irmã sugerindo tomar cuidado com esse negócio de querer ser muito boazinha, morna e buscar agradar a todo mundo. Se não fosse menina de colo quando aqui chegou, poderia ter escrito a Freud prevenindo-o da maldade que pode parecer misturar psicanálise e política.
O fato é que naquele tempo havia um embaixador americano “amigo” de todas as grandes personalidades da época e, inclusive, com sua ajuda foi possível salvar Freud dos nazistas. Foi esse Embaixador, William Bullitt, que convenceu Freud a aplicar a psicanálise ao entendimento da personalidade e das atitudes de Woodrow Wilson, presidente americano a quem servia. O livro que dali saiu até os freudianos renegam. Em Thomas Woodrow Wilson: um estudo psicológico, de Sigmund Freud e William C. Bullitt, os processos psíquicos vividos pelo presidente suplantam os processos sociais vividos pelo mundo e que levaram os Estados Unidos à Primeira Guerra Mundial e a submeter a Alemanha ao Tratado de Versalhes. Como “benfeitor desinformado e manipulador”, Wilson neurotizou ainda mais a Europa e levou ao colapso a democracia no continente.
Freud alerta que seu propósito secreto não é demonstrar que Wilson era uma personalidade patológica e assim querer “tortuosamente solapar o apreço pelas suas realizações”. E com toda a integridade que sempre teve, diz que, embora diante da incerteza dos conceitos de normal e patológico, e mesmo sendo frequente grandes realizações virem acompanhadas de anormalidade psíquica, há grandes homens normais. E informa: “o conhecimento mais íntimo de um homem pode levar a uma estimativa mais exata de suas realizações”.
Wilson custou a entrar na Guerra pois preferia pregar “um Sermão da Montanha por dia”. Queria ser líder de uma “paz razoável” e criar a Liga das Nações, a entidade multilateral que deu origem à ONU e pela qual ele recebeu o prêmio Nobel da Paz. Nunca deixou de manter a ajuda financeira aos aliados, mas pouco se importava em compreender a diversidade da Europa, o que tirava Freud do sério.
É curioso notar que o texto sobre Wilson inaugura uma tradição de análise psicológica muito forte sobre presidentes nos EUA. Nenhum país faz previsões e retrospectivas das ações dos presidentes calcadas em traços psicológicos. Mas na América, mesmo que inopinadamente, isso nasce dessa controvertida parceria entre o brilhante servidor público e o espetacular descobridor do inconsciente.
Como nem todos os governantes têm sabedoria para se livrar de atitudes inúteis e ações desastrosas, o estudo psicológico dos líderes pode ser bom caminho para entender o sucesso ou fracasso de seus governos. Talvez não haja necessidade de ir tão longe como se foi na infância do presidente Wilson. Mas, que os processos inconscientes que marcam a vida das pessoas desde a infância são de lascar, isso é uma verdade. Prendem para sempre todos nós à nossa origem – origem dos desejos, identificações, recalques, fluxos de energia e criatividade que surgem desde o nascimento, origem de tudo.
Se o líder político embrulha o amor pelas pessoas na admiração ou no ódio ao pai; se sua atitude é nociva à comunidade da qual é membro e ao país que governa não importa se foi Freud, Shakespeare ou Sófocles que descobriram e descreveram isto. O certo é que, na maioria dos casos, o eleitor é sempre o último a saber do esconderijo do caráter, da motivação real pelo poder e do inteiro teor da personalidade de um líder.
Clarice sabia das angústias que levam uma pessoa a se perder. Sagaz, sem ser dura como Freud, era solidária até na solidão. Sugeria à irmã não se sentir a última: basta assistir minha vida sem eu saber! Enfim, diferente das conclusões do livro sobre a fraqueza do presidente Wilson, talvez ela não visse tanta culpa pela Europa conflagrada na formação presbiteriana daquele filho do reverendo titular da igreja na Virgínia. Quando escreveu à sua irmã sugerindo que ela “respeite o nó vital” que há em todos nós, acrescentou: “ninguém tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma… Somente até certo ponto se pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias”.
Desta história vejo algo de útil para observar na escolha do governante: a qualidade dos seus defeitos deve sempre predominar sobre o defeito das suas qualidades.
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PAULO DELGADO é sociólogo