Quai D’Orsay
Estado de Minas e Correio Braziliense, domingo, 7 de fevereiro de 2016.
A disposição que alguém dedica ao conforto e a atenção em relação às ideias de qualquer pessoa pode ser a prova da mais elevada educação. Mas em política externa costuma ser a maior inimiga da sinceridade e da clareza sobre a importância que as nações dão aos seus costumes e valores.
Dizem que foi Margareth Thatcher quem pôs fim aos longos almoços londrinos. Aquelas duas horas do dia em que as pessoas se acalmavam para se refestelar culinária, etílica e intelectualmente. Ganhar dinheiro na City de então não era tão imprevisível. Eram poucos e o mundo das finanças era menor. Nada como essa loucura paulistana e novaiorquina em que garotos trabalham de 7 às 23 para, quem sabe, ficarem ricos antes de se desesperarem.
A dominação do mundo pelo modo de produção anglo-saxão à moda Reagan-Thatcher empurrou a bebida para fora do almoço executivo. Empurrou, na verdade, o próprio almoço para fora da vida de boa parte dos executivos. O mundo unipolar e capitalista botou todo mundo, rico e pobre, para trabalhar alucinadamente em busca de um butim de riquezas ilimitadas, sempre em risco de se esvanecer ante a maior garra do competidor. Almoços longos passaram a ser malvistos. Beber à tarde então, um sacrilégio. Somente escondido, longe do local de trabalho, da família, e, como ensinaram os japoneses, não atrapalhando o fluxo do metro é possível ter a paz do almoço antigo.
Ao gosto da brilhante menina filha de quitandeiro inglês, a competição estava decretada e aberta para todos de acordo com a capacidade e o esforço de cada um. A metodista Thatcher levou a simbiose entre capitalismo e a ética protestante para outro patamar. O que ela não podia imaginar é que a porteira que abriu com sua determinação em mudar o mundo levaria a muitas coisas opostas à sua crença. Junto com bons ventos de liberdade para enriquecer veio também a diminuição da fé, os antidepressivos e o aumento da concentração de renda.
A riqueza básica e as amenidades tecnológicas atingiram mais lares, é verdade. Mas ninguém fica mais rico por comprar um micro-ondas, pois, não existe progresso sem progresso nos costumes culturais. O mundo liberal da produtividade, competitividade e inovação virou o paraíso dos nerds e o purgatório dos obcecados. Ambos unidos pela forma como erguem sua cabeça acima da multidão para defender os valores da atualidade. O romantismo acabou, a vida é um jogo de acumulação, divirta-se com moderação se você quer ser alguém. A expressão inglesa liquid lunch, que denotava almoços regados a bebida alcóolica, está em vias de passar a ser somente associada ao mundo dos compostos alimentares. Que buscam saciar e nutrir, em poucos minutos, pessoas sem tempo, reféns de dieta e remunerações extras.
Um dos poucos lugares, em que a moral ultraprodutiva e competitiva atual não conseguiu afastar o vinho do almoço diário, foi no mundo dos latinos europeus, especialmente na França. E isso ocorre em boa parte inclusive, não nos enganemos, por uma questão de mercado. A França, afinal, aprendeu a viver de seu charme. Se o mundo conhece o vinho desde os mesopotâmios da Era Babilônica e, vimos o gosto por ele se expandir pelo mediterrâneo através dos fenícios e gregos, antes de nossa Era Comum, foi na França que o vinho atingiu o ápice de seu esplendor cultural para os tempos atuais.
Loire, Rhône, Bordeaux, Jura, Savóia, Languedoc-Roussillon, Alsácia, Champagne, Borgonha, Dordonha e Provence. São regiões geográficas, definidas por rios, montanhas, políticas, histórias e culturas, mas são, sobretudo, conhecidas por serem regiões vinícolas de apelo internacional. Lá foi criada a Appellation d’Origine Contrôlée, atitude de quem valoriza a produção como arte, a garantia da qualidade como obrigação e orgulho do produtor. Muito diferente da ética do mundo atual, onde o maior produtor de cerveja é abstêmio.
Por isso o Quai d’Orsay, o Itamaraty francês, está certo em orientar o presidente Hollande a não abrir mão de manter à mesa o vinho, o que levou o presidente iraniano Hassan Rouhani a cancelar o almoço. A mesopotâmia, onde nasceu o vinho, é hoje o vale dos xiitas que ameaçam o mundo com seu egoísmo teológico. No mais, se a questão é de alergia alimentar ou restrição social ou religiosa, basta não beber o que é oferecido e não querer impedir um país de oferecer a um convidado o produto que o caracteriza.
E como é carnaval, lembremos de Churchill explicando aos ingleses porque era importante entrar na guerra: “lembrem-se senhores: não é apenas pela França que nós estamos lutando. É por Champangne!”.
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PAULO DELGADO é sociólogo.