Salário europeu, inépcia brasileira
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 29 de agosto de 2021.
A União Europeia (UE) busca dar mais um passo na direção da integração de suas sociedades ao definir um salário mínimo europeu. Segundo defensores da proposta, ela tem dois objetivos interligados: limitar a concorrência “desleal” entre os Estados-membros, ao mesmo tempo em que garante um nível de vida decente aos trabalhadores europeus.
Bancada pela França, a proposta encontra dois focos de resistência que bem simbolizam as dificuldades objetivas da globalização dentro da UE. Por um lado, países do Leste Europeu são reticentes porque acreditam que uma das fontes de sua vantagem competitiva com relação ao resto da UE seja justamente o fato de praticarem salários mais baixos. Por outro lado, países nórdicos consideram que a UE não tem legitimidade para dizer a eles o que fazer em termos de regulação do mercado de trabalho, porque eles regulam muito melhor do que a UE.
O estado de bem-estar social nórdico, simbolizado pela Suécia – país que conta com a maior população da região –, é mantido por uma bem-azeitada relação entre sindicatos de trabalhadores, sindicatos patronais e o governo. É uma história antiga de como o choque entre capitalismo liberal e comunismo encontrou uma síntese propulsora de educação, civilidade e riqueza. No capitalismo nórdico, o salário não é a definição principal do grau de bem-estar social do individuo que não acumulou ou herdou capital. Além disso, as negociações, as barganhas e os acordos entre empresas privadas, sindicatos e governo são parte da “identidade” desses países. Por lá, a solução democrática para os conflitos foi fazer a vida das pessoas tão melhor que elas desistiram de se revoltar.
Em outros lugares, a solução autoritária para insatisfação é piorar a vida das pessoas a um extremo que elas perdem a força e as condições de revolta. Geram trabalhadores comodificados e uma sociedade cuja aparência de harmonia é falsa, violenta e injusta. Funciona sugando a vida das pessoas até colapsar. Tal era o caso dos países a Leste da Cortina de Ferro.
O interessante é que países do Leste Europeu – que vieram daquele lado da Cortina de Ferro – fizeram sua opção pelo liberalismo e pela UE ao mesmo tempo em que traçaram sua estratégia de integração pela prática de salários mais baixos. A República Tcheca tem hoje um dos níveis mais altos de complexidade econômica na UE justamente porque atraiu para lá produção industrial de produtos complexos a serem montados por uma mão de obra bem-educada e de baixo custo.
Apesar de aparecer bem no índice, a propriedade intelectual não é tcheca. Para ser sustentável, o país precisa ir aprimorando sua inventividade e os retornos para sua sociedade, enquanto negocia uma relação ganha-ganha com os centros de poder e riqueza europeus. Dentro do contexto europeu, tchecos, húngaros e poloneses buscam fazer como fez o Sudeste Asiático na sua relação com os norte-americanos. Abrir a economia e aprender.
Afinal, não adianta, na falta de imaginação, decidir desvalorizar a mão de obra de seus país. Porque até quem se deu bem fazendo isso dependeu decisivamente de ter alguém abrindo o mercado do outro lado para viabilização de tal estratégia. Não adianta baratear seus trabalhadores se não tiver garantia de mercado no exterior para a produção.
Entre outras, essa é justamente uma das maiores inépcias da política de trabalho, emprego e renda em torno da Carteira Verde-Amarela e seus derivados na atual PEC 1.045, em discussão no Senado. Só um liberalismo soviético é capaz de propor tal barbaridade. Ela desconhece a realidade global de que não adianta ter a oferta mais barata possível de trabalho se não estiver negociada a demanda. Porque a única oferta que cria sua própria demanda não é a do trabalhador barato, mas, sim, a do trabalhador qualificado e produtivo, que gera produtos com cada vez mais qualidade e inovação.
Os centros de poder político da UE querem um salário mínimo europeu para harmonizar a união em um meio-termo entre o céu nórdico e o purgatório do Leste Europeu. Nenhum dos extremos topa a harmonização porque estão com seus modelos funcionando e percebem que é uma jogada de força por parte de Paris para puxar a sardinha para o seu lado. É interessante ver três grupos de países que cuidam conscientemente dos seus interesses porque sabem realmente o que tem melhores condições de enriquecer suas sociedades e aumentar o poder de suas democracias num mundo globalizado. Defendem modelos distintos ainda que dentro da mesma união, mantendo coerência com seus interesses. Já o Brasil cria programas sem pé nem cabeça por falta de prestar atenção em como funciona de fato o mundo.