Separatismos no século XXI
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 15 de outubro de 2017.
Há um caminho muito estreito para as nações passarem. A sociedade anda certa que está pagando aos governos uma conta muito acima do que devia. É essa maré de desilusão-iludida que vem carregando inúmeras regiões para falseados romantismos separatistas. Diferentemente da explosão nacionalista do século XIX, que formou os Estados Nacionais, os movimentos atuais não são resultado da descoberta da autoestima afirmadora da individualidade cultural. Vivemos em uma era ultra individualista, sem espírito- criativo-coletivo, em que o respeito às particularidades que distinguem uns dos outros encontra-se cada vez mais inculcado na formação das gentes e nas instituições que regulam o proceder social. A liberdade, em anúncios intermináveis, é a maior prisão em que vive o mundo atual. Dinheiro, política e, poder fazer o que quiser, não mudam ninguém, desmascaram.
A Catalunha separada da Espanha, mais do que o Brexit, que separou a Inglaterra da União Europeia, assusta mais pela culpa que carrega a Europa sobre a imposição de força que usou nos casos da Croácia, Bósnia e do Kosovo. Todos se perguntam o que é autoderminação em uma região multilinguística e tão pouco homogênea, material e culturalmente, como o continente europeu. Escócia, Tirol, País Basco, Córsega, Baviera, são inúmeros outros fragmentos da Europa democrática que poderão querer se separar.
Qual o sentido de se pleitear ser pequeno em um mundo de gigantes? Não há uma grande visão que sustente uma Catalunha melhor divorciada. As liberdades identitárias estão asseguradas e há benefícios diversos de se ter escala e poder se sentar à mesa com os grandes que deliberam sobre as questões mais universalmente relevantes do globo. Ser uma voz secundária e proforma na Europa? Abdicar de Forças Armadas relativamente baratas e eficientes? Estabelecer uma inimizade regional imprevisível? Tudo isso por conta de um desacordo com a política fiscal da nação, espertamente apimentado com uma retórica nacionalista que, ainda que bem embasada historicamente, não encontra verdadeiro eco e justificativa no contexto atual. Após a ditadura de Franco é impossível argumentar que Madrid, e o resto das regiões dessa colcha de retalhos medieval, não tenham cumprido os acordos firmados para garantir a união em torno do Estado central.
Colocando tudo na balança, a rivalidade, os amores imperfeitos, a vontade de afirmação da diferença e da autopercebida superioridade de cada parte, nada isso justifica que a Espanha moderna não presuponha a coexistência de Barcelona e Madrid.
De 1412 para cá, quando se assentou no trono catalão um príncipe de Castela, a Catalunha mudou de mão ao gosto das disputas dinásticas. Mas é notória a evidência que os longos períodos em que esteve ligada a Castela foram épocas de prosperidade e de construção conjunta da história da Espanha que são indissociáveis da própria noção de pátria para os dois.
A questão catalã lança luz sobre uma realidade mais ampla. A visão de autonomia ancora-se, nos tempos atuais, numa profunda crise identitária pela qual regiões, mas também pessoas, estão passando. O que move as multidões incendiárias não é um projeto social amplo, inclusivo, acima dos indivíduos e visando um direcionamento para um destino romântico, altruísta e desapegado de pátria. É, antes de mais nada, a expressão, tecida e tornada possível pelas novas tecnologias da informação, do grito gutural de defesa dos interesses individuais. Alimentado pelos detentores do poder de uma elite política regional que, por conta de tais tecnologias, não guarda mais nenhuma distância que a distinga da paixão da multidão de concidadãos/eleitores. O poder ilegítimo, para ser exercido, precisa de distanciamento. De que vale nas crises históricas um político exatamente igual ao seu impaciente eleitor ?.
Nunca foi tão necessário se construir uma interpretação positiva da União que sustenta e dá forma aos países. A inclinação humana para a sobrevivência alargou seu horizonte de tal forma que não ocorre, apenas, no sentimento de viver-mais-separadamente, que existe entre regiões. Até na vida privada essa ilusão de ser feliz sozinho e poder tocar trombeta para as nuvens tem levado a hábitos descuidados de desejos incontidos. Que impulsionam filhos a reivindicarem já a herança a um pai vivo.
Essa dramática situação separatista, de contornos bíblicos, é recepcionada pelo direito internacional que admite a precedência da integridade territorial sobre a autodeterminação. Ainda que ambas tenham igual legitimidade. Mas nem em todos casos, as razões para a autodeterminação separatista, legitimam a quebra da integridade territorial.
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PAULO DELGADO é Sociólogo.