Um mundo desolado
Tempos difíceis, mas arquive o desespero, mesmo o impossível é temporário. Há um mal-estar no mundo atual. Em vários países as pessoas acham que é algo só com elas, mas é geral. Agravado pela pandemia não é coisa recente. E são diversas as formas como o abatimento do mundo se relaciona com o mal-estar da convivência humana. Uma das formas de se pensar a razão de tal incômodo, meio oriundo de perplexidade atiçada por quem abusa da sensibilidade das pessoas, tem a ver com a ideia de “normalidade” e a expectativa associada a ela.
As pessoas tendem a associar o senso de segurança com a capacidade de controlar o mundo que vivem. O controle vem de um esforço de classificação em que diferentes coisas se tornam normais, no sentido de esperar, querer e buscar. Mas também servem para estigmatizar e excluir o que fica às margens da normalização. Parte do mal-estar se dá por uma tensão de controle.
De um lado forças de emancipação empurram o mundo para formas mais abertas de coexistência, mas nem sempre se organizam para predominar. Por outro lado, grupos organizados se especializaram em classificar pessoas para se beneficiar, controlar e lucrar com um mundo mais fechado e hierarquizado em termos de poder.
Roy Richard Grinker é autor de um livro lançado neste 2021 (mas ainda sem edição em português) que ajuda a entender algumas bases desse mal-estar. O título é “Ninguém é normal: como a cultura criou o estigma do transtorno mental”. Grinker é um antropólogo e professor de relações internacionais na Universidade George Washington.
Apesar do foco do livro se dar no preconceito e nos vários equívocos de tratamento que são oriundos dos estigmas em torno dos transtornos mentais, ele é na verdade uma história mais ampla sobre como a reverência exagerada à conformidade faz com que pessoas sofram com estigmas. Sem perceber os segredos dentro dessa “normalidade” muita gente se desespera. Muitas vezes as pessoas sofrem não de doenças, mas de sofrimentos causados pelo peso que se dá a elas.
Infelizmente as coisas funcionam assim: quando o paciente marca a consulta ele costuma ter uma doença (illness, em inglês); quando sai do consultório ele já está com outra doença(disease). E a doença definida pelo médico costuma ser pior do que a doença do paciente.
Grinker lembra que “alguma forma de estigma existe por todo lado no mundo, mas o que é estigmatizado sempre varia de acordo com o tempo e o lugar.” No contexto da competição econômica “as pessoas mais estigmatizadas tendem a ser aquelas que não conformam com o ideal do trabalhador moderno: autônomo e autossuficiente.” As diferentes sociedades sofrem mais à medida que produzem modelos de comportamentos estanques, o caminho para mais identidades desacreditadas.
Grinker recorda que o primeiro Diagnóstico e Estatística de Transtorno Mental – DSM1 – da psiquiatria norte-americana foi escrito por militares, publicado durante a guerra da Coréia, e é um “casamento entre experiência militar com teoria psicanalítica”. Até hoje suas versões são “manuais descritivos dedicados não a estabelecer causalidade, mas sim a catalogar sintomas.”
Só que sintomas variam de acordo com diferentes culturas e sociedades. Argumenta ele que “classificações científicas podem às vezes impedir nossos esforços de nos definir por nós mesmos,” e cita como exemplo um caso estudado em São Paulo em que quando a linguagem do DSM é utilizada com pacientes colocando a enfermidade da pessoa na linguagem de doença, eles perdem a habilidade de expressar compreensões mais positivas sobre suas próprias condições.
Logo, países diferentes deveriam criar seus próprios DSM. Copiar/colar revela plágio e plágio nunca foi um pilar da sabedoria. Esse é um sintoma, por assim dizer, do problema de noções hierárquicas nas relações internacionais. Elas facilitam a compreensão e é compreensível que exista quem as deseje, mas elas são inúteis quando há mais contradições do que coerências dentro dos costumes.
Evidente que a vontade de restabelecer hierarquia e poder é grande, mas vai na contramão de forças emancipatórias mais fortes que empurram o mundo para formas mais abertas de coexistência.
O funcionamento da democracia e de uma paz real na política mundial surgem quando a hierarquia política se tornar ultrapassada e uma forma de “apolaridade cívica” – como recentemente argumentada por Bertrand Badie – for finalmente estabelecida. Em muitos países falta um ator de rosto sereno capaz de parar o entusiasmo com o êxtase da normalidade ruim e capaz de tocar a vida sem ver imperfeição nos desolados. Sem nenhuma possibilidade conciliatória a vida em sociedade não melhora. Pois não basta somente a luta contra a pobreza se a riqueza não nos livra da tristeza.