Um tempo episódico da Justiça
Por mais novidade que se busque ao escrever sobre juízes e suas funções, permanência e mudança prevalecem. A Justiça, num tempo de transição como o nosso, propenso a lendas e mitologias, faz a visibilidade de muitos transcender seu papel. Cada um de nós, por sua vez, é a memória dos tempos e atos que viveu. O juiz não deveria exagerar no dom de engenhoso construtor do destino do outro. Humanismo judicial, subjetivismo interpretativo, aderência circunstancial ao literal aumentaram a aceitação do caos. Quanto mais se exalta a alma da pessoa, mais perde a alma constitucional da função. Todavia, acreditar no propósito ético dos juízes, seu instinto para a boa-fé, é essencial.
Pois é claro que um bom juiz é uma alegria para sempre. Prescinde do tempo e da moda. Não transmuta em desventura e belezas a seu modo. A toga iluminada, seja o atendido ousado ou passivo, não deve ser insolente. Tento transmitir aqui um desespero correto para evitar a tristeza inoperante, como ensina Emil Cioran.
Juiz que ama ou odeia forma vínculo com o que julga e fica atado até os ossos à tutela da sentença. Imaginação, acima de tristes fatos, incita a querer que rosas se anteponham a espinhos. John Keats, poeta, nos ajuda a entender a boba da esperança.
Magistrados entoam desejos pinçados por cima do texto votado por constituintes de toda a Nação. Tanta coisa depende de um só que o processo, coroado de excesso, impõe ao País dor além do destino. Guias espirituais, autor, ator e prédio do teatro. Dramaturgos recebidos na sociedade dos grandes, esquecem a subvenção dos pequenos e avançam a escrever sobre como deve ser. Competição de estilos, imobilista, esportivo-protagonista, reacionário, populista-intervencionista, progressista, conservador, nenhum deve querer transformar consentimento popular em norma jurídica. Estilos polêmicos fazem rápidos os dias, aumentam o público que gosta de orbitar em torno de donos do poder.
Nossa época não atingirá sua perfeição se a Justiça projeta emoções próprias nas decisões que toma. Não é escrevendo outra Constituição, mas a lendo de forma cuidadosa que o Supremo fará dela um clássico respeitado por todos e não vantajoso para alguns.
Mais de 35 anos da Constituição, vejo os sentidos vagos e os acordes obscuros que decisões do Supremo deram ao que fizemos. Não tenho procuração para representar meus colegas constituintes, contemporâneos do mundo em que elaboramos o texto em vigor. Mas as coisas estão indo com seus remendos e ceras escorregadias, querendo se elevar acima do espírito que reflete nossa época. Ser ministro não corresponde a viver um tempo seu caído da História, autorizado a suspender, imaginando superar. É claro que ainda não reina a justiça, mas é melhor não oferecer nada como injustiça.
É falar para gente morta, arrabaldes de outras épocas, supor que as pessoas não preferem ser diferentes e que a Justiça hoje dá um jeito de as impedir de serem iguais. Ainda que diferentes, é assim que somos os mesmos. Não é nem mais o caso de ponderar sobre a legitimidade democrática da manifestação de um poder que não foi chancelado pelo voto popular quando sobrepõe a sua interpretação da Constituição àquela do Poder Legislativo que fez a lei. Não há ouvidos que ouçam. A razão humana habitua-se à servidão e à utopia com facilidade. Nosso tempo incluiu na conversação de rua e na ira dos partidos aquilo que deveria constar dos altos estudos.
Há uma ordem que convém à desordem. As relações secretas que o poder estabelece consigo mesmo justifica seus excessos e exalta sua intocabilidade. Isso não se dá pela natureza do poder, mas pela graça provida pelo élan do ocupante. Orgulhoso pelos furores humanos nenhum defeito agita quem ocupa poder vitalício. Tudo cada vez mais familiar, de casta, heráldico. Pessoas de sete nomes, oito a menos do que d. Pedro II. Ah, como seria o poder não profanado pela lealdade a ancestrais privados?
O Brasil não estimula a maturidade exigida pelo nosso tempo. Os viajantes não querem ser julgados por onde vão, nem revelam o interesse pelo que pensam. Dominados pelo instinto de caçadores de originalidades velhas, vestidas por tecidos novos, fictícios, virtuais, escondidos por frases e fotos para divulgação, nem sempre revelam o fim a que se destinam. Quem se afasta de casa desse modo é irrevogável voltar diferente.
Foi de grande importância para o crescimento das nações algum gracejo engenhoso, sem escárnio desumanizador, contra o mau exercício do poder. Só um príncipe da zombaria e a opulência do crítico são capazes de perceber a dissolução de um período histórico ao submeter ao jugo da correção e ao escrutínio do bom gosto o movimento da autoridade. Se alguém leva a sério a moda de colóquios desconcertantes no exterior em locais permeáveis a bajuladores, é porque podemos regredir mais. Voltaire, La Fontaine, Lampedusa, Bernard Shaw, Brecht, H. L. Mencken, Machado de Assis, Barão de Itararé, Henfil, Millôr traçariam matizes cruéis de quem se oferece ao elogio no desterro. Não existe mais contingência, o Brasil os tem de sobra. Nossa maior dificuldade continua a ser o cotidiano.