Uma Constituição traída
O Estado de S. Paulo – 10 de outubro de 2018.
Passados 30 anos, como moderadora da ira social, a Constituição é até vitoriosa. Atravessou oito períodos presidenciais e dois impeachments sem turbulência institucional incontrolável. Mas como solução para o esgotamento do modelo econômico que nos oprime e forma legal de levar o país à prosperidade, foi derrotada. Infelizmente, desde a sua elaboração a Constituição não conseguiu assegurar acumulação de energia capaz de levar ao progresso econômico da Nação e à autonomia do cidadão perante o Estado.
A Constituição, sem aceitar a natureza criativa da economia, não conseguiu vincular prosperidade à liberdade de iniciativa e ao prazer de enriquecer paulatinamente. Com mão de ferro impôs controle à vida social e produtiva; tamanhas tutela e tributação a contribuintes e investidores, criando tantas conexões e sócios ocultos entre o Estado e a vida econômica que feriu de morte a iniciativa privada. Com isso o Brasil patina no seu crescimento econômico desde a promulgação da Carta de 88. Tal disfuncionalidade prejudica especialmente os mais jovens, os menos educados e os mais pobres, influenciados por uma análise paralisante dos problemas do País encostada na comodidade de culpar o mundo por tudo o que fizemos de errado. Enfrentando a maioria de suas crises com sentimentos de aversão, improvisação e sem confiança no seu povo, a ordem econômica brasileira é um oligopólio manipulado pelo Estado, o maior controlador e concentrador de poder na economia.
Ainda não chegamos ao fim, mas estamos no limite da macrolealdade constitucional, racional e humanitária com a proliferação de novos códigos culturais. A cidadania se vaporiza pelo abuso de seu uso vulgar e sem limites. Vivemos o tempo da fragmentação, do senso comum sem apreço pela lógica da coletividade, da atomização e da microssociologia do interesse. Os sentimentos em ação se deslocaram do sentido geral para o individualismo possessivo, do entusiasmo e esperança para a preocupação e o medo. A indignação, que é um sentimento social, virou raiva, marca da personalidade individual enfurecida. De maneira geral podemos dizer que o ambiente político, jurídico, intelectual não aprecia mais a cultura nem o brilho do outro, atormentado por comportamentos em que imperam meras imposturas e desvirtuamentos de qualquer raciocínio pela força da emoção e do sentimento de improvisação. O Brasil separou a ação do sonho e não abriu as portas da percepção para ver o bullying que políticos e ministros do Supremo, como valentões amedrontadores e interpretadores, aplicam no País, protegidos pela volatilidade da Carta Constitucional escrita para colocar o povo no centro e o Estado a seu serviço.
Mesmo sendo justo apontar os problemas fiscais como fruto do contrato social firmado na Constituição, não devemos usar isso para negar a virtude necessária de um contrato social. Devemos, sim, considerar uma verdadeira depravação política a manipulação da questão social para manter o gigantismo irracional do Estado. Como exemplo podemos dizer que as vinculações constitucionais são um desestímulo à gestão austera e eficiente dos recursos públicos. O mau uso da Constituição tornou crime, pela vinculação obrigatória, estabelecer que não adianta economizar ou ser eficiente. Incentivado a gastar de forma irresponsável, o gestor público administra um saco sem fundo chamado educação, saúde e assistência social. Por fatos como esse a questão fiscal e tributária tornou-se a espinha dorsal, a arquitetura do estatismo estéril brasileiro. É a despesa que cria imposto e não temos uma política com força para dizer o que o governo não deve pagar, nem para justificar que não deve contratar mais gente. Porque, hoje, garantir mais um direito é um ardil que o Estado usa para gastar o excesso do Orçamento engessado.
A União vale-se de um texto da arte de vitral para introduzir e aumentar tanto os intermediários entre o cidadão e o Estado como a forma de fazer as leis fiscais e tributárias grudarem na sociedade como goma arábica. São as vinculações e a interpretação infraconstitucional de ministérios que tutelam a economia, isolam a Nação do comércio mundial, paralisam a ousadia empresarial, estatizam o cidadão. Tudo o que é direito se converte em mais despesa com cartório público, autoridade, burocracia. Até a compaixão foi estatizada, com uma política social que vislumbra substituir a força e a autonomia das entidades da sociedade, anteriores à formação do Estado nacional, para criar o pobre estatal e a falácia da igualdade, sempre utilizada para fins eleitorais.
Quem estimula o conflito na sociedade é o Estado, para mais se agigantar sobre ela. Diante disso, arrisco-me a dizer que a Constituição é violada cada vez que algum setor reivindica uma identidade exclusiva para si e consegue alterá-la. Ou quando o enunciado do direito é interpretado pela Justiça ou pelo Ministério Público como privilégio de alguns para furar a fila da coletividade e alcançar nos tribunais direitos especiais para si, como ocorre com a farmácia do remédio exclusivo, que só existe na cabeça de juízes elitistas, em confronto com a farmácia do SUS, que passa a ter problemas para servir à maioria.
Apesar de tudo, não creio que a debilidade da Constituição seja pelo fato de permitir mudanças, mas sim por fazê-la uma Constituição traída, quando tais mudanças não são do interesse geral. Nenhum cidadão se torna agradecido por se apropriar do que é do outro. Nem toda necessidade humana é responsabilidade do Estado atendê-la. Não cabe à Constituição nem proteger as pessoas contra suas escolhas, nem impor a elas escolhas setoriais que acarretam danos aos outros. A Constituição não deve pretender ser âncora, deve ser a asa da Nação.
Com esse espírito fui constituinte. Com o mesmo espírito a homenageio 30 anos depois.
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