A águia e o Zé Carioca

O Estado de S. Paulo – 10 de agosto de 2022

O voo solo, duplo e rasante da águia americana sobre o papagaio brasileiro usou duas notas diplomáticas como o mais poderoso sistema de armas da democracia em tempos de paz para produzir desengajamento. Sem infligir danos materiais e exigir esforço complexo, produziu a rápida neutralização externa do inimigo da verdade, esvaziando sua capacidade de ação ou evasão. Uma interação exemplar de ação tática, estratégica e política mostrando a artificialidade de querer dar a um equipamento mecânico expressão mais versátil do que aquela a que se destina. 

Sim, quando o encarregado de negócios expôs de Brasília a verdadeira intenção da reunião com os embaixadores, iniciou a redação da mensagem de Washington em que o porta-voz do governo norte-americano afirma que não quer como aliado um Trump oferecido e conspícuo em crise. De certa forma, pressentiu que a reunião tinha caráter separatista. 

Foi ele, sim, o presidente, que quis usar governos estrangeiros para extrair coragem para sua falta de autoridade. Comunicou a embaixadores que pretende resistir e retaliar, com ações e leis não escritas, ao resultado das eleições de outubro. E, ao deixar de fora alguns países, definiu a reunião nos termos de uma associação íntima, supondo poder pedir cumplicidade para resolver questão interna brasileira. Deu com os burros n’água e sua intenção, como náusea, apenas fluiu na garganta da Nação. 

Teses alarmistas e correntes – e testadas sem sucesso pela provocação da presidente da Câmara baixa norte-americana em viagem fútil a Taiwan – andam circulando nos meios acadêmicos tentando convencer o governo dos EUA de que está montada a Armadilha de Tucídides nos destinos do país. Desde que a Universidade Harvard fez a releitura da Guerra do Peloponeso, passou-se a divulgar a ideia de que é uma tendência inevitável acontecer de uma potência ascendente (ontem Atenas, hoje China) acabar sendo invadida por uma que começa a perder a hegemonia (ontem Esparta, hoje EUA). 

O presidente deve ter sido informado da tese por maus militares que veem a diplomacia como atividade de indolentes. E logo viu a chance de se oferecer como soldier blue contra a ameaça vermelha. Tirando a implausibilidade da tese, o governo não se deu conta de que é de envergonhar Esparta precisar de aliados tão atrapalhados no gigante do Cone Sul. Os diplomatas foram convocados para o presidente dizer que tem de ganhar a eleição de qualquer jeito para ajudar os EUA no conflito. 

Conflito que não querem, contra a China. O mundo atual é maior do que a Grécia antiga, com Ocidente e Oriente interdependentes. A urna eletrônica entrou como galhofa da transição de poder em Tucídides, baboseira de politicólogos recheando a cabeça de governantes insensatos. 

Há, no entanto, outra explicação para as afrontas do presidente à inteligência dos embaixadores. Quem, presunçoso-desinformado, sem medida ou deveres, e ainda se vê absorvido pela política de forma complacente usa a democracia como interlúdio adequado para governar por conflitos e confrontos. O presidente é um arcaico amargo, contra a ciência, o progresso e a razão. Por isso a autoria intelectual da reunião deve ter sido inspirada em militares ludistas que o cercam, uma contradição no país da Embraer e com programa de submarino nuclear. 

Ned Ludd, personagem fictício criado pelo movimento operário inglês no século 19, estimulava a quebra das máquinas que substituíam o tear manual no início da industrialização. O movimento destruía fábricas, falava da fraude e do engano acusando o progresso de criar o desemprego. Só foi detido quando o Parlamento propôs a pena de morte para os envolvidos. Como o Parlamento brasileiro é que se faz de morto, o presidente faz o que quer andando por aí, travesso, de velocípede de idoso. 

Desacreditar como fraudulenta e enganosa uma máquina eletroeletrônica de circuito fechado, com software próprio, prevista no Código Eleitoral de 1932, marca brasileira, usada desde os anos 1990, que registra, coleta, armazena e contabiliza os votos dos eleitores de forma totalmente digital, é ludismo de militares retrógrados que expõem a vulnerabilidade de nossas Forças Armadas envolvidas com metas políticas e intenções agressivas. 

Não há solução militar para toda meta política nem saída legal para resolver falta de voto com solução de força. Diferentemente de vários países igualmente democráticos, no Brasil o voto em urna é a única certificação que confirma o vencedor. Não há outra. 

Saber da vulnerabilidade do aliado é elemento essencial de uma boa política de defesa. O que os embaixadores pressentiram é que nossa soberania é atualmente secundária, pode ser desrespeitada por amigo, fronteiras violadas com apoio de aliados internos. Crime de lesa-pátria. 

O governo brasileiro vem tornando medíocres todos os assuntos de democracia, segurança e defesa, podendo tornar o País ingovernável. A Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, da USP, contém um quê da intuição de Churchill. Porque o povo, sem vigília, é sempre desmentido em seu sonho, quando não vê como indecente a máscara de poder sem decência.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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