A banalização do desamparo

O Estado de S. Paulo – 14 de setembro de 2022

Com escassos dois séculos, a história breve brasileira continua carregada de desrespeito e crueldade. Os fatos, e seus coadjuvantes, estão aí. Difícil de desassociar a linguagem violenta divulgada nas redes da violência que a ela se segue.

Sem querer condescender à amizade e à razão, a tecnologia coopera para aumentar a força do erro na educação e destrói a sociabilidade humana. O Brasil não colocou freio na soberba e nos malefícios dos dispositivos digitais, e vai tocando a eleição como videogame.

A campanha eleitoral – que passa ao largo da discussão sobre o consumo digital, antes o festeja e venera – escancara o desafio que se agrava. Não há no horizonte uma solução sábia e tranquilizadora capaz de deter o mal ostensivo e oculto da internet e das redes sociais viciadas. Que solidão, que desapontamento faz jovens e suas famílias ficarem tão perdidos assim, sem ter ninguém que se importe com eles antes de chegarem aos seus limites e baterem em hospitais, delegacias e nos tribunais?

Que paixão indomável os prende a tudo que os impressiona, em competição aberta com álcool, droga e associação criminosa, já bem conhecidas. Quantas análises são prejudicadas por quem prefere falar do óbvio que são as vantagens da tecnologia. Vamos nos concentrar nas desvantagens, no sofrimento, para não precisar nos arrepender, como Alfred Nobel se arrependeu de ter criado a dinamite.

Há, de fato, um fenômeno novo e preocupante agenciando a vida das pessoas e as encaixando em territórios alienados da realidade.

A predominância de empresas estrangeiras, cujo controle de sua responsabilidade social não é nacional, torna muitas vezes o uso de aplicativos um território sem lei ou laboratório de jurisdição extraterritorial expandida. Sem acordos de cooperação claros, quando os dados são armazenados no exterior – caso de todos eles –, fica difícil de imaginar que a autoridade brasileira possa exigir o cumprimento de parâmetros nacionais no Judiciário de terceiros países. Manejando de forma abusiva as telas, a maldade humana, que já é transnacional, compete com a diminuição da bondade.

A desproteção dos jovens diante da orgia digital está produzindo imaturidade anatômica, funcional e ignorância na geração atual. O cérebro é uma massa modelar empobrecida pelo uso da internet e danificada pela tela do celular e do computador.

A sociedade homogênea estimulada pela vida digital está em conexão direta com a vulnerabilidade de idosos, abuso infantil, pornografia, golpes financeiros, ansiedade e depressão.

Não deveria ser obrigatório que o celular se tornasse o centro da nossa vida. Pergunte à Interpol por que os crimes cibernéticos e o estelionato virtual estão se tornando a principal atividade econômica delinquencial de nosso tempo.

O “estar só”, o resolva por si mesmo, encontrou no mundo digital o parceiro para criar a comunidade dos sozinhos e se impor como moda. Todos os dias se divulga e se defende, hipocritamente, a legitimidade da vontade das pessoas por uma fé cega na liberdade de não ter liberdade. Cada vez mais se expressa emoção por emojis, ideogramas da preguiça afetiva e vocabular, sem se dar conta de que a representação de sentimentos sem a necessidade da palavra, do verbo, nega a origem da humanidade.

A gramática dos guetos seduz jovens para caminhos confusos, em realidade artificialmente criada para consumo comercial, e gerando os espaços socioafetivos fechados para que os capturados possam, em grupo, ser o que quiserem. Inclusive amorais, e justificarem todas as suas escolhas e comportamentos egoístas protegidos por afinidades tecnológicas.

O impacto nocivo da tecnologia digital sobre a vida de crianças e adolescentes está destruindo, na geração atual, a aptidão para a liberdade. A genialidade hoje não é a inteligência, mas a extravagância.

Uma infância zumbi, impregnada; aula sem professor; burrice cognitiva; família em restaurante com interação amputada por alguma tela; sono afetado; sedentarismo devastador; violência das influências subliminares; manias; jogos de morte; etc. Em quem acreditar? Quem sabe lendo Michel Desmurget (A fábrica de cretinos digitais – Os perigos das telas para nossas crianças) seja possível começar a desconfiar desta modernidade toda.

A vulnerabilidade de crianças e adolescentes não é somente socioeconômica, é, especialmente, biológica, etária, psicológica. O trabalho infantil não está mais concentrado, exclusivamente, na economia informal, na produção agrícola, nas atividades ilícitas. Crianças e adolescentes são hoje mão de obra gratuita da tecnologia digital. Não é mais, predominantemente, a pobreza na ponta e o analfabetismo na outra. Os jovens de qualquer classe, sequestrados e cativos da tecnologia, também não têm voz, infância, salubridade ou liberdade. Não são donos do seu corpo, da sua mente e das suas emoções.

O capitalismo de atenção atrai incautos para o trabalho não remunerado. E seu local de exploração são os dedos e os olhos de crianças e adolescentes, inertes em sua imaturidade física e emocional, abandonados horas e horas a fio, hipnotizados.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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