A Constituição que virou suco

11/01/2023

Cada parlamentar do Brasil se compromete com o eleitor a ser ele mesmo, dando ao senso de desempenho mais valor do que ao senso de dever. Cheio de si vai ao limite no exercício de mandatos, praticamente unânimes em ferir a Constituição. O eu-deputado, alheio a ser representante coletivo da sociedade esgotada, opera sistematicamente uma violência contra a regra maior do País, produzindo enfartes legais, cada vez mais frequentes, através do uso abusivo de emendas constitucionais. Agente da precariedade da vida legal, esse legislador abusivo não se sente submetido a qualquer coação legal por estar em seu poder mudar a lei quando quiser.

Sem exceção, confirmam o agouro de que, se não pudessem contar com os bons, os maus seriam inúteis.

Segundo a Agência Senado, o Congresso Nacional promulgou 14 emendas à Constituição somente em 2022. O número é recorde para um único ano desde que a Carta entrou em vigor. O número de promulgações de 2022 é quase o dobro do ano recordista anterior – 2014 –, com oito emendas promulgadas. Além desses, em apenas cinco outros anos houve pelo menos seis promulgações. Somente em 2020, ano um da pandemia de covid-19, a Constituição não foi violada.

A máquina regimental de moer leis continua em pleno vigor. Ao todo, a legislatura que se encerra promulgou 22,6% de todas as emendas constitucionais até hoje. Uma enfermidade nascida dos ajustes regimentais para enfrentar a temporalidade da pandemia, que criou o parlamentar virtual e a votação goela abaixo do prato feito. Gladiadores executam a lei sem dó, no Coliseu do plenário. 

A eventualidade da regra virou doença crônica, e as leis passaram a servir meramente para manter a realidade presa à exceção, tirando da vida a vivacidade e o desejo de viver em situação normal. A mania de fazer emenda constitucional reflete um país sem meta, corroído pela erosão social e a má visão do que é o seu destino.

As emendas promulgadas em 2022 são uma balbúrdia. Elas tocam em vários assuntos como tributação, regras eleitorais, Judiciário, Orçamento, administração pública, pisos salariais específicos, estado de emergência. Quase todas foram aprovadas por unanimidade ou muito próximo disso. Não tiveram grande oposição nem disputa voto a voto, não passaram por comissões ou receberam muitas emendas.

A Constituição foi modificada 140 vezes desde 1988. Além das 128 emendas regulares, há as seis emendas aprovadas durante a revisão constitucional de 1994 e seis tratados internacionais sobre direitos humanos já aprovados pelo Congresso com quórum de emenda constitucional e que, por isso, têm a mesma força. 

Há muitas casas cuja planta não vai além do alicerce. A democracia representativa, por suas frágeis fundações e paredes indolentes, é a face mais precária da política nacional. Quando imagina poder enfrentar o inadequado, confunde a vontade do legislador de si mesmo com o sonho de consertar tudo, sem conseguir avançar sólida para mudar nada.

Uma característica da Assembleia Constituinte é que, apesar dos excessos, tinha um norte: se filiar aos alicerces do mundo moderno – o constitucionalismo, o humanismo, o liberalismo e o racionalismo como princípios de utilidade pública. A ideia de uma Constituição é a de um magistrado silencioso, guardião da previsibilidade das normas, a lei viva que produz paz social.

Porém, se Poderes se comportam por seus próprios motivos, deixam na penumbra a força de uma lei maior. E como o País não consegue enfrentar a realidade sem rebaixar sua Constituição, até que ponto se estende a todos a obediência devida a ela?

Aproveito a trágica coincidência do vandalismo ocorrido em Brasília para chamar a atenção para a previsão da Constituição de que, em caso de intervenção federal, fica limitada ou proibida a sanha de querer mudar a Constituição. Ou seja, os problemas reais, de fundo, não precisam ser resolvidos com emenda Constitucional.

O buraco do Brasil sempre foi mais em baixo. Há a força do submundo de elitismo, desespero e absurdo que se manifestou na capital, onde alguns pagam para outros derrubarem o governo. A menor parte do problema é a paixão popular. A mais evidente é a ação de senhores feudais contratarem mercenários para destruir prédio público, com as digitais e farrapos de um governo fora do poder – que morreu, mas está de prontidão. A tarde de domingo é um alerta final para a importância de uma Constituição respeitada.

Um recado especial para os militares de todas as organizações que se acham intocáveis, como se tivessem um deus na farda. O afrouxamento dos ligamentos legais, estimulado por leis inarticuladas, não alcançou o arbusto espinhoso, o ninho que choca os interesses da ordem e da vontade arbitrária do sistema de segurança e de defesa do Brasil. A cultura autoritária das forças policiais e militares, sustentada pela tendência aduladora de maus governantes, nunca aceitou o fato de que, com a Constituição de 1988, as relações de poder penderam para a sociedade civil. Nem de que a democracia é a principal escolta que o País precisa.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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