A tecnologia como descaminho

Uma das características da estruturação social contemporânea é o endeusamento da tecnologia e da automação que, sem linhagem cultural ou moral, vende a ideia de que seus produtos são cadinho glorioso a serviço da felicidade humana. Há coisas que a tecnologia implica, mas não inclui. Não sendo nem aristocrática nem popular, a tecnologia, como ordem deformadora, cavalga a sociedade como tormenta que inflama sem compensar a renovação que promete.

Chamar o artificial de inteligência prolonga de forma majestosa a conotação pejorativa da expressão. O labirinto desta inteligência degenerativa acelera o descaminho humano rumo ao viver à revelia numa época de derrota, medo e impotência. Devoradora da política, da cultura e da economia, a tara por algoritmo fará do cérebro um aterro sanitário, lixão onde a IA acumulará sua espécie de poluição plástica.

Comandando um poder sem igual na História, a inovação como aspiração nervosa por êxito imediatista e amoralidade do triunfo é automatismo sem origem e destino moral elevado. Podemos até supor que não há virtude em começar pobre e ficar rico criando tais invenções. Pois o modo de enriquecer que não exige virtude ou a ela leva não tem expressão moral. Êxito predatório que aumenta a arrogância, servidão, crime e individualismo.

A necessidade, como estado emocional de carência, é da categoria da vida psicológica e tem papel modesto na hierarquia das satisfações. Valorizá-la demais é entregar sua personalidade a aplicativos, aumentando a frustração, a dominação. A teoria da necessidade não deve ser associada à ideia da obrigatoriedade, pelo perigo de se instalar de forma opressiva na pessoa. Resistir a este abuso pode fazer o ser humano mais feliz.

A invencionice é mania velha que permite a falsificação de preferências. A moda do comportamento artificial se espalha como fato corriqueiro em que um especialista se acha mais importante do que o caso que analisa. Na medicina em que a ausculta do paciente não importa; na cirurgia plástica que faz o rosto sem alma; no juiz virtual locutor de sentença que não escreveu; na advocacia do pedigree que piora o caso para cobrar mais pela cara do cliente; na arquitetura que só sabe fazer projeto para foto de revista, e não moradia para conforto e convivência; e entre procuradores, os novos detetives, que simulam situações falsas para criar réu ilegal – são situações inventadas e desagradáveis.

A cobiça por degenerar voz e sentimento para comércio íntimo de signos faz da química do invencionismo doença, falácia dos sentidos. Oposto ao fato central na história dos povos, que desenvolveram por necessidade natural várias línguas, sem terem inventado nenhuma. Na indústria militar, cresce a ilusão da guerra limpa, como se matar a distância fosse eticamente superior a dar uma facada à queima roupa. Na espionagem, impera a obscenidade.

O abuso de tecnologias e robôs tira o ser humano do centro das decisões e torna o trabalho mera ferramenta que atrapalha. Na escada do progresso, benefícios financeiros não deveriam conter desejos superiores aos benefícios sociais. Diminuir custos, aumentar lucros e a produtividade sem se preocupar com a melhoria da performance e da criatividade humanas é tipo maléfico de automação, que pode produzir inesperados prejuízos. Nada será engenhoso se não puder ser controlado por humanos com capacidade de compreender, intervir e corrigir máquinas e sistemas tecnológicos. A escravidão tecnológica em curso amplia a manipulação da vida e tem sido uma grande fonte de ofensas, golpes e ações ilegais. Até nos conceitos filosóficos mínimos da boa educação, a ênfase e o uso abusivo dos sistemas autônomos contribuem para o indivíduo falar mal e se comportar pior.

A automação dá celebridade ao distraído, faz o mundo homogêneo sem ser coeso, amplia rotina, cria uma espécie de irresponsabilidade organizada sem sensibilidade pública. A interação artificial é bezerro de ouro que rouba da inteligência a faculdade de aprender e duvidar, cega a razão para onde derivam e convergem todas as coisas. A ética dos fundamentos da robótica anda a passos lentos. Quando perceber que adorar o bezerro é o caos, já terá criado a pessoa-pastel e o mundo às voltas com crimes frutos de tais invenções.

Considerar algumas invenções inúteis não é escândalo. No movimento da vida, nem todas as rodas precisam rodar. A boa necessidade contribui para diminuir o sofrimento humano, valoriza as coisas sem usar necessidades desnecessárias. É abjeta a invenção que quer instituir o mundo em bases inumanas. Tornar o diálogo silencioso, falar pelo outro, sem o outro, tornar o pensamento espúrio e o raciocínio insignificante são imprecações sem máscara.

Não é gênio quem ridiculariza a ética. Negócio sem poesia, a IA te empresta o barco para o afogar no mar. Nem alivia a tensão entre o real e o possível nem reconcilia sua utilidade com o elevado sentido da necessidade. Afinal, o que é mais sublime, a fé ou a descrença? Saturado até o tédio por tanta invenção idiota, ofereço minha dúvida na esperança de não ter razão.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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