Adeus a Franco Rotelli

Grazie Franco!. Obrigado Franco, foi o título do bilhete deixado na porta da casa do psiquiatra de 80 anos, em Trieste, Itália, no dia 16 de março, quando foi anunciada sua morte. Dizia, “somos loucos e você defendeu nossos sonhos, abandonou as regras em favor de nossas necessidades. Você que lutando contra velhas verdades nos deixou menos loucos, porque loucos em liberdade”. Junto ao bilhete, assinado “Loucos de Trieste”, foi deixado um buquê de flores.

Rotelli foi o mais importante colaborador de Franco Basaglia, autor da luminosa e inspiradora lei de desospitalização e ressocialização de doentes mentais. A Lei Basaglia redirecionou o modelo de atenção aos portadores de sofrimento psíquico, mudança iniciada de forma parcial por reformistas britânicos. Mas tudo mudou para valer quando Basaglia dirigiu o manicômio de Gorizia, cidade da região de Veneza, considerado o marco inicial da psiquiatria social.

Rotelli, italiano nascido em Cremona, comunidade da região da Lombardia, dedicou sua vida a reparar pessoas quebradas pela máquina impiedosa que preserva e fabrica de forma maltratada seres humanos destruídos pelo sofrimento mental e feridos pelo preconceito.

Rotelli é da estirpe e da galeria dos grandes nomes da psiquiatria humanista mundial, seguidor de David Cooper, Ronald Lang, Irving Gofman, Michel Foucault, Nise da Silveira, Felix Guattari e parceiro inseparável de Franco Basaglia. Houve uma época em que as pessoas riam sem interesse, o humor não era insulto, havia a possibilidade de uma vida psíquica autogerida. O louco fazia parte da paisagem e a compreensão humana era o principal protetor dos que vivem em desvantagem.

Quando as pessoas perderam o direito à vida livre nas cidades; aumentou a violência; o trabalho passou a ser sinônimo de penosidade; a identidade entrou em deriva levando as diferenças humanas para os tribunais; as regras da economia passaram a não valer nada, somente servir para empobrecer a maioria das pessoas; a escola perdeu o rumo, se tornou obsoleta ou falsamente moderna; a religião virou negócio; a política ficou ridícula; a tecnologia ocupou o lugar do coração humano….a doença mental aumentou vertiginosamente e o sofrimento psicológico passou a predominar.

Imediatamente, para competir com os hospícios, surgiram as técnicas de encarceramento químico, comunidades terapêuticas oferecendo tratamento moralista e entupir os incômodos sedativos para adoecer o inadaptado ao mundo adoecedor. Pessoas frágeis, tímidas, traumatizadas, nem sempre aguentam as decepções e a perda do sentido pedagógico e terapêutico de uma vida pessoal e comunitária que não seja impulsionada pela compreensão, felicidade e alegria.

A medicina da alma incomoda a psiquiatria hospitalar, pouco sensível à importância da alta do paciente, mesmo quando sua condição clínica é determinada por seu destino. O aprisionamento hospitalar, em sua versão mais doentia, o manicômio, não deixa o sofredor mental libertar-se de suas correntes pulsionais utilizando sua fantasia, seus sonhos, suas alucinações. Rotelli, como diretor por mais de 15 anos do Hospital de Trieste, espalhou sua visão humanista de tratamento pelo mundo e criou serviços alternativos à internação.

Não aceitava reduzir o ser humano à soma de seus sintomas cerebrais, nem usar jargão e injúria contra quem precisa de atenção, acolhimento e cuidado. Um desafio ao mundo frio da estupidez vestida de ciência, a pretensa racionalidade da farmacologia e do diagnóstico clínico devorador do espírito, onde a má medicina se imagina o remédio da doença que ajudou a agravar.

A boa psiquiatria, psicologia ou psicanálise, precisa de grandeza para não duvidar que o inconsciente de um profissional também está atuando quando pensa saber mais do que o inconsciente daquele que o procura. Na medicina, quem se faz de senhor, quer que o outro se faça de servo.

Um saber clínico necessário ao sucesso da reforma psiquiátrica tem que se dedicar a cultivar uma psicoterapia de caráter clínico-social dirigida à autoestima do usuário do serviço, a deixá-lo flanar, assistido ou por seus próprios meios, sem a contenção arrogante dos serviços fechados.

O cientificismo médico-hospital-farmácia e sua pretensão de ultra especialização sem a escuta do paciente é fraude, pois quem trata de seres humanos não pode ser um mero perseguidor de sintomas. E aquele que sabe diagnosticar nada ajuda se não tiver simpatia e bondade pelo que sofre.

Conviver com Franco Rotelli foi uma das melhores coisas da minha vida.  Suas ideias inspiraram a lei brasileira da reforma psiquiátrica que tive a honra de ser o autor. Grazie Franco! Por todos.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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