Adeus, meninos

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 11 de setembro de 2011.

A história é sempre mais dura do que parece para quem a viveu do que para quem escreve sobre ela.Mas a totalidade dos seus efeitos ultrapassa a compreensão humana imediata. Lembro-me bem da terça-feira, 11 de setembro de 2001. E cada vez mais vejo suas conseqüências por todos os lados.

Não partilho da crueldade paranoica que tomou conta do romancista Gore Vidal e do documentarista Michael Moore sobre a cumplicidade do governo dos EUA na origem do ato terrorista que completa 10 anos hoje. Os dois abusam da pretensiosa ousadia sem frescor, comum na luta política, que é dar opinião misturando crítica e cólera. O que pode até salvar suas almas, mas contribui para diminuir o senso de realidade na percepção de situações-limite e das diferentes gradações do mal e da crueldade.

É certo, porém, que o governo Bush, com sua índole ruim, jogou fora a maior manifestação mundial de solidariedade ao povo americano e partiu, feroz, para continuar sua guerra pessoal, brutal e unilateral, contra povos e culturas diferentes da sua. Assim, ajudou a consolidar no mundo a desconfiança na força da liberdade, da cooperação e da democracia. Para mim, a maior consequência do 11 de setembro foi o surgimento de uma nova disciplina psíquica para se viver em sociedade. Um jeito tecnológico, invasivo e caríssimo de moldar a opinião pública mundial a favor de comandos e controles cada vez mais frequentes na vida de cada um. E um calculado desprezo pela solidariedade, pela justiça e pela educação. A técnica competindo com a maldade.

A lógica do medo e da insegurança cumpre a notável função de perturbar a confiança individual em soluções não repressivas e aumentar a desconfiança na vida coletiva, comunitária e pública. O que o 11 de setembro exacerbou foi essa tendência à expansão sem limites dos “sinais da conduta imprópria e suspeita”, criando um sistema contra a simplicidade e a inocência, o que tornou a vida mais cara e o medo constante. Resultado: o egoísmo e a frieza das relações humanas, nesse mundo superpovoado e às pressas, penetraram cada vez mais no cotidiano das pessoas.

Uma verdadeira idolatria da segurança e da segregação tomou conta de tudo e diminuiu a tolerância que leva à reflexão sobre como renunciar à violência e centrar as preocupações da vida em objetivos racionais, culturais, econômicos e educacionais.

Ao contrário, a tendência agora é misturar a discussão dos traços trágicos e sádicos da criminalidade às frias pressões por mais orçamento para repressão e mais leis contra a liberdade individual. O sistema industrial de equipamentos repressivos dominou a mente dos governantes. A maioria não se dá conta dessa coisa insuportavelmente natural que é cada vez mais gente com poder de polícia. A partir de um raciocínio mecânico e lotérico do que seja periculosidade, vive-se sob a condição de triunfo do terrorismo, e quase todos passaram a ser regidos pela lógica da desconfiança e da “presunção da periculosidade”. É a lei do estigma que rege a ideia de que a peculiaridade de algumas pessoas forma uma categoria a partir da qual você distingue os outros. E, nesse caso, torna todos suspeitos.

Cada vez menos se leva em conta a vida e a honestidade básica da vida. A regra é rotular e suspeitar de que a familiaridade de todos com delitos e crimes pode somente estar ocultada. O que conta é a uniformização dos cidadãos e sua captura para o mundo do perigo, do medo, da vigilância ostensiva. Nada de prevenção, rotina de proteção, participação dos interessados. É lei mundial passar sua alma no raio-X.Nessas condições, o habeas corpus é inalcançável, e as fortalezas privadas, exércitos particulares, são considerados normais e aconselháveis… A vida assim gerida por um mundo inevitável de ordens, suspeições, arbítrios e intimidações. Uma cidadania agachada para a maioria que vive normalmente e não vê graça em clubes fechados, só para sócios, que é a principal conseqüência da vida aprisionada a que estamos submetidos.

Quando Theodor Adorno chegou a Nova York, fugindo da perseguição nazista, alertou, em célebres conferências, para o risco de o mundo livre ter que, pelas deficiências educacionais, culturais e pelas injustiças econômicas, importar a lógica repressiva das sociedades totalitárias. Certamente, Adorno não imaginava a dimensão do que estava por vir. O cenário que vemos aí é de descrença crescente no predomínio da civilização sobre a barbárie, e a coerência de fachada que é dizer que a guerra contra o mal exige o fim da liberdade para suas vítimas.

O que o terrorismo conseguiu é roubar tempo, sensatez e dinheiro da luta pelo progresso, aumentando o mundo de “não pessoas” (de bem) que circulam por aí em liberdade vigiada.

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Paulo Delgado, sociólogo, foi deputado federal.


Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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