Adoradores do infortúnio

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O Estado de S. Paulo – 11/10/2017

O Supremo e o Congresso transbordam contradição. Poderiam ser dois poderes essenciais à renovação da vida democrática se deixassem o país suspender a credulidade pelo período fracassado. Há uma impressão de que o discernimento da sociedade não interessa quando a autoridade gasta seus defeitos supondo ter qualidades superiores à de quem critica. O Brasil não pode sucumbir ao sintoma de transtorno patriótico que a influência desses dois maus terapeutas institucionais anda favorecendo. Um poder que não se arrepende de falar não sabe a hora de calar. A metáfora negativa de segredo e vaidade, domina. Nem na guerra a ira no ofício se aconselha.

Será que chegamos ao vaticínio do presidente Harry Truman: quer um amigo em Washington ? Arranje um cachorro.

O modelo econômico ainda não domina, mas se recompõe. Se por um lado diminuiu a percepção de risco na atividade econômica; a convergência de inflação e juros baixos pontifica; os fluxos de capital internacional retomam sua rotina em direção ao país; os níveis de inadimplência estão estáveis; o consumidor recupera sua confiança e volta ao mercado; a incerteza empresarial quanto a investimento arrefece; o índice de desemprego começa a recuar; na vida de quem trabalha e produz riqueza os pepinos estão sendo provisionados. Por outro lado, o modelo político é o velho que não mais predomina, inapto para a responsabilidade coletiva. O descontrole da voracidade está levando muito tempo para passar porque o Supremo escolheu o governo para por canga e, assim, esfregar urtiga na mudança.

Essa acentuada intensidade para influenciar errado, e a superstição jurídica que a alimenta, submete a vida a uma hierarquia de interesses oficiais que não dá folga aos brasileiros. Estamos presos a uma teia de aranha nascida da falta de ordem do Estado que age como se fosse diretor de teatro, distribuísse os papeis e a posição de cada um no espetáculo. Quem se queixa da intenção excessiva é informado que aderiu inconscientemente ao script. Ninguém é o que é. Cumpre ter paciência e agradecer. Como espectador desprezível de um tempo passado que não passa o povo é da peça a aflição.

O esforço da maioria dos brasileiros em manter sua independência, ser dono do próprio negócio, ter autonomia, esbarra sempre na conspiração da autoridade para oferecer-se como refúgio de amigos. Perdão Marx, mas aqui, o ópio do povo é o Estado.

Todos que brincavam de ser justos, imersos em seu cânone de sucesso, deveriam recear o incômodo que causam à justiça. Os erros se acumularam e suas falanges se infiltraram na alma das decisões. Em que esferas invisíveis andam formando opinião nossos juízes? Quem cava o poço profundo do subterrâneo de onde saem as atitudes de nossos políticos?

A amizade de muitos membros do legislativo e do judiciário por si mesmos tem levado a Constituição a viver essa vida melancólica de rainha desrespeitada. Nunca foi possível dizer “A Constituição é”. Na cultura jurídica atual ninguém é seu filho. Nossas autoridades preferem ser descendentes de quem as nomeou e, talvez sem se darem conta, aplicam os arquétipos da amizade às suas decisões. Esse sentimento preexiste às normas. O afeto que serve de escada ao poder, a circunstância que produz simpatia/antipatia, é tutelar, mais do que as leis estáveis. Sua consciência é inapreensível. Aquoso e verboso o ministro conjuntural é um escavador de temporais. Seu compromisso com o passado preenche o presente e o definha.

Onze juízes nomeados, vitalícios, recebem, de 50 senadores eleitos, amedrontados, o engano lícito que enterra em uma noite dois poderes entupidos de apetite avinagrado. A primeira turma de um deles, fanáticos para equilibrar o jogo político usando o erro do senador caído, contorna a lei com a matemática. Servem aos seus fantasmas que, como se fosse deles o porteiro, abriu a corte a fatalidade de negar sua condição de poder superior. Usando ferramenta de casa já quebrada, conscientes que o medo de políticos processados oferece imensidades a visão ilimitada de poder, empilham réus a Deus-dará.

A função do conhecimento é diminuir a força da opinião. É preciso superar o governo improvisador,  considerado genial, ousado, carismático. Bravata é ranço e o ranço se acumula e logo se revela.

Seguimos confortáveis e desatentos ao que acontece. A política, como está, não é mais a corneteira da alvorada. Se fizeram a vã-guarda do passado. Seu escombro serve a dois líderes da tropa dos improvisadores, desbocados e caluniosos que só crescem se cresce a violência.  Um criou do outro a moldura, são estatistas fanáticos, esquerda/direita. A cara do conflito mais velho da política, o fundo do poço. E como em todo fundo sempre existe um fundo mais baixo assim. Não sendo líderes livres de preconceito não querem que ninguém seja. Freiam a mudança, são espora no cavalo de raça que é a razão.  Seguram a rédea do senso comum, tiram a grandeza da justiça para não deixar o passado clarear. Quarados ao sol, passarão. Pois um se decapitou, mas ainda não lhe cortaram a cabeça. O outro pede para ser degolado, fantasma de uniforme que usa de tempos em tempos o corpo de alguma mula sem cabeça.

Um êxito errado, festejado como humanitário, prejudica a análise do período.  O alívio temporário do sofrimento e a devoção excessiva ao arranjo político sem princípio agravou a injustiça estrutural e produziu consequências funestas na análise política de longo prazo. Foi um tempo onde predominou o tratamento errado de erros levando a sociedade a demorar a notar que sem amparar economicamente ninguém será soerguido socialmente.

Se alguém chega ao poder é porque existe algo…algo de bom, algo de podre. Quando sai, pela forma que sai, os fatos nos comunicam alguma coisa, feridas curadas, sintomas de doenças represadas ou silenciosamente alimentadas. Se o Supremo, o poder que decifra a Constituição, por razões políticas não consegue fazer a coisa certa, que pelo menos procure errar melhor.

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PAULO DELGADO é Sociólogo

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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