Ar das dinastias, andar das gerações

O Estado de S. Paulo – 14/12/2022

Para a China, e sua grande consciência de destino espiritual, a pátria é o partido. Para seus mais de 90 milhões de membros, dissecadores impiedosos da ética do político que ora presta, ora não presta, o tigre em repouso não deve mais esconder sua força, aguardar seu tempo. Não é ruptura, pois, com a visão de que o sucessivo não existe, tudo é, não admite passagem. Lendários farejadores de temperamentos imediatistas e zelosos usuários do tempo, os chineses sabem que povo a quem o passado não ensina o futuro o ameaça.

Toda sucessão na China tem o ar das dinastias e o andar das gerações. De longe, parece o tranquilo deslocamento de um cisne pelas águas; de perto, lembra o tempo em que as mulheres eram obrigadas a esmagar as articulações dos pés para andar com a graciosidade dos cisnes sobre o lago. O 20.º Congresso do Partido Comunista chega ao fim com troca de poder, sem troca de comando.

Xi Jinping, que vai acumular pela terceira vez os principais cargos políticos do país, nasceu em 1953, enquanto seu pai era o secretário-geral do Conselho de Estado. No jargão chinês, é um principezinho, alguém cujas credenciais de poder são oriundas da memória revolucionária do pai. No caso da família Xi, a história do patriarca explica a legitimação política do filho e o destino por trás do estrondoso êxito do país.

Êxito que permite ao presidente Xi até ficar de saco cheio da hegemonia norte-americana, mas não é aconselhável que enfrente, desesperadamente, as borrascas econômicas, geopolíticas, tecnológicas e sanitárias do momento. A pressa é a doença mortal do desespero. Um temporal mundial fabricado pela esterilidade da política que decidiu entreter as multidões com tudo, exceto com aquilo que importa. Um mundo de rebanhos enganados, dispersos e isolados por redes digitais, hipnotismo que impede o cidadão de se dedicar a consagrar, construir, buscar e atingir a paz e a prosperidade.

Xi Zhongxun, pai de Xi, lutou ao lado de Mao Tsé-tung durante a sangrenta guerra civil que precedeu a criação da República Popular da China. Isso após ter sua vida poupada quando se desentendeu com líderes militares pouco antes da chegada da Grande Marcha à província de Shaanxi. Mao não apenas salvou a vida de Zhongxun, como o promoveu na hierarquia comunista. Tempos depois, já estabelecida a República Popular, o pai de Xi Jinping foi, contudo, expurgado, durante a Revolução Cultural, pelo mesmo Mao, e a família passou anos separada e em regime de trabalho forçado. Ao consagrado líder do 20.º Congresso só restou, então, a humilhação de lavar porcos.

Mas como em política ninguém nunca está clinicamente morto, o proscrito fez nascer a nova China.

Após Mao, Deng Xiaoping – três vezes expurgado e reabilitado – assumiu a liderança do país em 1978, dando início ao ciclo de reformas que levariam a China à feição atual. No mesmo ano, Xi Zhongxun foi reabilitado e pôs em prática a faceta mais explícita do novo “socialismo com características chinesas”, como Deng apelidou o capitalismo por lá.

À frente da província de Guangdong, Xi pai foi responsável por inovações institucionais juntando o capital das endinheiradas Hong Kong e Taiwan com a infindável e barata mão de obra local. De lá para cá, Guangdong é a província chinesa que mais enriqueceu. Aplicando com maestria o mantra de Deng de que “enriquecer é glorioso”, Xi Zhongxun solidificou sua influência e pavimentou a legitimidade para a sólida ascensão do filho.

Para além de modelos econômicos, ajuste complexo entre grupos de poder, embate e acomodação, Xi Jinping se tornou o líder ungido como denominador comum. Da fricção entre o grupo que se formou em torno de Hu Jintao – antecessor que se encontrou nove vezes com Barack Obama, levado a perder a face diante do mundo, ao ser retirado da mesa principal do 20.º Congresso como coisa sem mais serventia – e o grupo que orbita em torno da influência pessoal do ancião Jiang Zemin, morto mês passado, cresceu a estrela de Xi Jinping, iluminada pela simpatia do grupo de Jiang, pelo providencial respeito por Hu e por ser familiarizado com os demais herdeiros. A dissolução do poder que se anuncia reafirma a senha de Xi de governar por “consenso imposto”, liderança pessoal maior desde Mao e Deng.

Externamente, o país acordará o tigre, sem se esforçar para encontrar o equilíbrio entre a projeção de poder e a busca do crescimento econômico. A velha ordem de se manter discreto não existe mais. Os desafios são grandes nesta gigantesca potência econômica, mas onde subsistem graves problemas sociais e uma complicada conjuntura externa. A China, que cresceu durante as últimas décadas como entreposto mundial, se dedicará agora a ser um shopping nacional.

É o último suspiro da geração que chegou ao poder tendo sobrevivido à Revolução Cultural. Xi Jinping é consciente da atenção do mundo à voz chinesa. Mas sabe que o desafio para quem quer ser ouvido é ter sabedoria no que diz. Fazer Hu Jintao sumir da foto do sucesso chinês é revelação ruim do que vai pela China.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *