Brasil, um país sem carro próprio

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 31 de janeiro de 2021.

Passados 100 anos da vinda da Ford para o Brasil, a borracha não é mais importante para a Região Norte e, por curiosidade, a maior plantation desse produto no mundo é mantida pela Firestone na Libéria – país que fica mais ou menos na mesma altura da Fordlândia, só que do outro lado do Atlântico. 

Sendo que a relação entre a Firestone e a Libéria é uma das mais confusas entre empresa e país que se tem por aí. Se a Ford abandonou a Fordlândia em 1945, dando fim ao Ciclo da Borracha, hoje, por conta do encontro de uma estratégia defeituosa com a mudança de outro ciclo da economia mundial são as montadoras que vão sendo abandonadas.

E é um engano achar que o Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes e dimensões continentais, pode se sustentar só na base de soja, boi, minerais e serviços de baixo valor agregado. Principalmente se o governo insistir na retórica antipreservação da natureza. 

Se alguém achar que pode fazer da Amazônia pasto ou mina, sem confrontar as novas agendas que vêm a reboque das novas tecnologias e regras do jogo comercial e ambiental, adeus país celeiro do mundo.


Só nos últimos 20 anos, os incentivos da União através de renúncia fiscal somam R$ 69 bilhões para as montadoras instaladas no país. Some-se a isso outras várias dezenas de bilhões de reais em empréstimos subsidiados (só a Ford no mesmo período recebeu R$ 6,6 bilhões do BNDES). E ninguém fora do Brasil entende como pode o governo brasileiro não ter financiando pelo menos uma joint-venture com esse dinheiro.
O espírito empreendedor dos profissionais da indústria automobilística brasileira, criadores de dezenas de marcas pequenas competitivas, fica a ver navios quando a trajetória da economia global toma novo rumo e as montadoras de passagem pelo país voltam às suas matrizes para ganhar na nova trajetória. 

Isso que está acontecendo agora é a oportunidade para se ter clareza de que o modelo precisa mudar. Quem quiser incentivos fiscais, de infraestrutura e de empréstimos com acesso ao mercado deveria fazer uma joint-venture com o capital nacional, deixando aqui uma fatia da especialização tecnológica.

A Embrapa e a Embraer são uma boa síntese do lado inteligente do Brasil. Quem faz pesquisa básica – exemplo dos EUA – são instituições de estado que passam a tecnologia para empresas do país se encaixarem melhor nas cadeias globais de valor. 

Agora que as cadeias mudam, como no caso do automóvel, mesmo sendo um dos maiores mercados do mundo, a ousadia empresarial que sonhou a FNM, Agrale, Gurgel, Troller, Lafer, Tac, Puma e tantas outras marcas nacionais sempre esbarrou na indiferença governamental para ciência e tecnologia e P&D. Bons governos sabem que nas cadeias globais de valor quem fica com a parte mais interessante do lucro – e que decide que partes comprar – é quem detém o design, a engenharia de montagem, a marca própria.


Na crise atual das elites políticas perdidas em lutas partidárias vazias, subjugadas a um governo para quem desfraldar uma bandeira é falar palavrão, o país mantém a visão antiquada para buscar novos investidores para as fábricas abandonadas pela Ford. A China é a bola da vez. Mas seja com China, seja com quem for, país independente e inteligente organiza parcerias. 

De EUA a Japão, todos entendem isso. Especialmente a China, que é o país que calçou sua ascensão de um PIB menor do que o brasileiro ao de quase maior economia do mundo justamente exigindo joint-ventures para operações em seu mercado.


Semana passada, aliás, nasceu Stellantis, fruto da fusão de Fiat-Chrysler com a Peugeot-Citroën. Com a expansão e a divisão da produção entre vários continentes, com aumento da complexidade da identidade das marcas, é incompreensível uma sequência de governantes tão negligentes com o capital brasileiro a ponto de não conseguirem se associar a uma fatia das operações no Brasil. Algo que colocaria o país em uma posição de vantagem para empreender junto e assegurar uma parte dos ganhos da especialização tecnológica.


O mundo mudou e o país que considerar isso um mal ou um perigo não deterá o progresso nem poderá lidar com ele. Tecnologia não poluente, desenvolvimento sustentável, ecossistemas comerciais integrados e erradicação da pobreza são aspectos da nova agenda mundial, que é muito centrada no Acordo de Paris, aprovado por consenso por 195 países. 

Um mundo com menos barulho e sem poluição é o horizonte humano. Quando o motor substituiu o cavalo, o mamífero não piorou. Quando o carro poluidor e atravancador de rua se aposentar, o mundo será melhor.

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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