CHINA: UM GRANDE ERRO

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 04 de março de 2018.
A reeleição para cargos executivos — doença autoimune em que a pretensão política ataca o corpo do sistema político e, quase sempre, o adoece — foi adotada no Brasil em 28 de janeiro de 1997. Continua um tema controverso em todo o mundo. Ao mesmo tempo que um horizonte muito curto impede a concretização de maiores planos, a possibilidade de reeleição leva o chefe do Executivo a entregar os primeiros anos para receber os últimos, paga oito e leva quatro. Ou seja, uma mera, mas tumultuada, ilusão.
Para ter tempo de desenvolver planos com os quais chegou ao poder, um governo precisa de aliados e substitutos à altura. Algo próximo a modéstia e a sabedoria, mais do que a oito anos. Claro que, implantado o princípio, é saudável também que possa ser questionada sua permanência na metade do caminho, o rito de reeleição. Todavia, as instituições deveriam funcionar de tal forma que a reeleição fosse somente uma avaliação concreta se o governo merece o tempo máximo de dois mandatos.
Em países onde situação e oposição têm caras claras, tudo é mais equilibrado e racional. O governante não se reelege apenas se realmente não estiver indo bem. O governo é entregue então à oposição, que é, na grande maior parte, a mesma desde a eleição anterior. Nos EUA, 21 dos 44 presidentes do país foram reeleitos. Tem ainda o curioso caso de Grover Cleveland, único que teve dois mandatos não consecutivos.
Na China, o processo de escolha do presidente não é democrático, mas seu sistema de governo baseado em um partido único se esforça para extrair legitimidade também da noção de representatividade. O partido conta com cerca de 90 milhões de membros, todos com direito a votar para eleger quem serão os representantes que elegerão os delegados no Congresso Nacional do Partido Comunista da China. Escolhas em muitos níveis, majoritariamente organizadas de forma indireta, mas funcionais. As cartas são bastante marcadas, mas há uma organicidade previsível e respeitada. Os caminhos para ascensão dentro da estrutura de exercício de poder e desenho de políticas públicas do país são, por assim dizer, meritocráticos. Se há uma explicação para que os comunistas chineses tenham sobrevivido à esmagadora maioria das experiências marxista-leninistas é o fato de terem se livrado da figura do grande líder. O mito da ditadura do proletariado envelopado de maneira funcional na ditadura de um partido enorme que se confunde com o próprio Estado degringola, inapelavelmente, quando se desvirtua em ditadura de alguém.
Stalin, quando perdeu a noção em dezembro de 1929, passou a se dizer Pai dos Povos, Generalíssimo, Corifeu da Ciência, Amigo Benevolente de Todas as Crianças, Paizinho, Titio, Titã da Revolução Mundial, Mais Profundo Teórico dos Tempos Contemporâneos e por aí afora. É patético o líder que se acha! Cruzando para o sul da Manchúria, o exemplo de Mao Zedong é menos ridículo, com Grande Timoneiro, Grande Professor, Grande Líder. Em parte, por estar durante largo período sob a sombra ameaçadora do próprio Stálin, e no restante porque, ao tentar herdar para si o culto à personalidade que a própria URSS passava a rejeitar, Mao sempre teve, para bem e para mal, uma trupe variável de camaradas que o tangenciava.
Uns aumentavam a maldade do líder, como é o caso da malfadada Gangue dos Quatro, que patrocinou o show de horrores da Revolução Cultural. Outros a dotavam de algum equilíbrio, como o emblemático Zhou Enlai. Por fim, alguns a direcionavam em força criadora, como, acima de todos, num recorte histórico, Deng Xiaoping. E foi Deng Xiaoping que acabou com essa coisa de alguém se perpetuar no poder. De ser grande líder, etc e tal. Não quis isso para si quando era sua vez. E impediu, de verdade, que o fizessem. Em última instância, o sacrifício de sua vaidade dotou a China de 40 anos de franco crescimento. É bíblico e confucionista: quem se exalta será humilhado, quem se humilha será exaltado. Aliás, é bíblico, confucionista e tudo o mais que houver de bom senso no mundo.
Xi Jinping não devia derrubar a arquitetura que Deng Xiaoping deixou. É ela que dota a gigantesca casa de harmonia. O mundo anda atiçando os fracos pelo desejo de lideranças fortes brotado de um substrato de medo. Ao se preocupar em atravessar a China por essas águas turvas que enxerga mirando no Ocidente, Xi pega o pior da política ocidental. Que é a tentativa pessoal de quebra de regra para perpetuação no poder para além da década tão suficiente e razoável para qualquer um que não se considere sobrenatural. Cinco anos para ele era pouco, 10 é bom, 15 ou mais é certamente um grande erro para a China.
Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *