Confortavelmente entorpecido

O Estado de S. Paulo – 09 de maio de 2018.

Todo o respeito ao amor, mas vamos mais longe sem ele, disse um abatido e atormentado Thomas Mann ao sair do funeral da irmã, que se fora tragicamente. Sentiu que “aquele raio que caiu de forma súbita tão desesperadamente perto” dele era a tempestade de profundo desamparo que chegava à sua volta. Especialmente porque era muito claro o sinal desencorajador da vida cultural, política e econômica da época. Pesa no peito ver que o cansaço que atinge o Brasil está ligado à dificuldade de mudar crenças enraizadas na dinâmica institucional ultrapassada que nos conforma. Reforçada pela devastação da política de gozos ilimitados que produziu a crise atual.

Olá, apenas acene se puder ouvir. O rancor não matou o amor. Tristes deslizamentos. Por maior que seja a importância da opinião, não exagere seu papel. Olho na atitude e na origem dos juízos morais. Leia o lábio dos falantes, repare se o estertor do fútil se mistura ao limite do inútil. Costumes ruins sufocam outras formas de expressão, a novidade é calma e incompreendida. Cancele a entrada dos fantasmas no domicílio dos desejos. E se ponha em pé de novo. O que recordamos não é mais realidade.

Dito isto, recorro a Italo Calvino para afirmar que é inútil determinar se o Brasil deve ser classificado entre os países felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir os países nessas duas espécies, mas em outras duas: aqueles que continuam ao longo dos anos e das mudanças a dar forma aos desejos de seus habitantes e aqueles em que os desejos das pessoas conseguem apagar o país ou são por ele destruídos.

O ícone, comum na nossa mitologia, vira fantasma sem força para ser símbolo da sociedade que o admira. Normalmente a encontra disponível, penetra sua alma, termina fazendo de si mesmo o que ela rejeita. Alimenta-se da exultação pela esperança e aproveita para confundir “sujeito” com “objeto”. Apropria-se do já feito e opera na coisa uma transgressão. Transfere um problema material, concreto, para a esfera espiritual desviada do lugar. Essa paixão pela influência vem da fantasia alimentada pela imaginação corrompida, imaginação má, inflada pelo elogio. O narcisismo é despolitizante. Suas vítimas precisam mais de calmante que de conselhos. O ícone é bibelô pesado de sociedade arcaica, boneco de loja de brinquedos preenchido com cacos de razão do desejo de qualquer um.

A política, principal lugar de peregrinação da fantasmagoria da sociedade, é o ateliê do fabricador de ilusões. Pelo esboço da figura é possível antever a estátua inteira. Basta um clique no seu ego e temos um ser necessário à causa de si próprio.

Por isso não arrefecerá até outubro o tom elevado da paixão política como forma de produzir faísca para influenciar votos. Só que, envergado por baixo do estranho círculo que envolve “amabilidade” em eleição, o naufrágio atual é esse silêncio da massa, entregue aos seus segredos.

Não é de crítica da solidariedade que se trata, o mais caído dos homens merece ser considerado. O que falta é certa qualidade a esta representação da bondade. É desastroso fingir que só há um preso, um único processo errado, e sair mentindo pelo mundo o frio esquecimento de aliados condenados. O ativismo, neste caso, não contém elemento de mudança. Nada vai encobrir as condições problemáticas do ocorrido.

Não se pode querer ver numa coisa o que já não exista nela. Nem entender nada fixado no tempo que abasteceu e usufruiu do sistema que prometeu combater. Ninguém caiu por contestá-lo, mas por usá-lo ao limite. Foi a rotina da sua realidade que desabou. Assim, a luta da inteligência de esquerda pela pacificação do País não é se alistar na trincheira da autocomplacência. Engajamento político necessário é a filosofia da liberdade que alimenta correntes de opinião e pensamentos de união livre e espontânea, autonomia, recusa de toda coação, indignação contra a violência dos privilégios, humanismo, universalidade, tolerância, opiniões pacíficas.

Dos visitadores, alguns pela prudência do súdito diante do senhor, ecoam lisonjas e paradoxos truculentos, sem se darem conta do lado injurioso que é exigir de alguém o que ele não pode dar. Os que o perderam por excesso de fruição talvez não notem que o martirizam sabendo que ele não deve fazer, no momento, outra gestão da sua existência. Difícil entender organização coletiva tão descuidada da reputação das palavras onde tudo é padecido, colérico, interditado. Perseverança que o desumaniza, amarrada no irreal. Suscitar tal paixão pelo sagrado só interessa a devotos. A democracia brasileira está dominada por essa crise do individualismo e influência ostentatória. Esse fogo sem forma que tirou da política a grandeza da moralidade comum e acabou dando a tribunais a pretensão de herói civilizador. Ambiguidade, nossa fratura exposta. O país do próprio como impróprio.

Um passado tão próximo, por força de escolhas alienantes, torna-se um passado ideal, como se os elementos da desordem que se seguiu já não estivessem contidos na ordem que se foi como fumaça de um navio que some no mar. Sistemas sociais e políticas distributivistas se misturaram ao contexto político de corrupção e desviaram o foco do capitalismo para a aceitação de relacionamentos escusos que mais oligopolizaram a nossa economia. Estruturado sobre dádiva, egoísmo e apreços, estagnou a inteligência crítica e a compreensão do óbvio.

Enquanto isso, segue em sonolência o desfile dos candidatos. Quem usufruir um poderoso é obrigado a dizer meu caro, você está fazendo cada vez mais bobagem. Vamos revogar a regra que é sonhar com uma ação inaudita, desdobrada, de um herói. Não estamos submissos a pessoas espetaculares, nem estamos regredindo. Não é assim que nós somos. Bom governante não torna o povo confortavelmente entorpecido.

 

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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