De quem a verdade, de quem a injúria

O passado se converte em presente quando as circunstâncias que o produziram nunca deixaram de existir. A paz mundial não será alcançada enquanto persistir a ideia de que a semente pode germinar sem que tenha sido plantada. Há um regime internacional cujas convenções estabelecem normas e códigos de conduta que devem ser respeitados num conflito armado. Uma linha de moderação que permita deixar algum espaço para a negociação entre os Estados envolvidos. Uma fórmula mínima de ética de guerra para impedir que combatentes virem sanguinários.

Um último recurso para diminuir o sofrimento humano e preservar um resto de humanismo na guerra é regido pelo Direito Internacional Humanitário, o jus in bello (direito na guerra). Deve existir, independentemente das causas, motivos e justificativas que um lado sempre utiliza para usar o jus ad bellum (direito à guerra) e querer que ela seja considerada justa.

O país com mais da metade dos fusos horários no mundo (14 oficiais) deveria estar mais bem preparado para cultivar a serenidade e ter visão de conjunto. Não deveria lutar pela necessidade de qualquer maneira e considerar sua razão uma verdade geral. Os governantes russos deveriam dar mais atenção à má energia que brota dos seus meridianos cerebrais. Necessidade e verdade não conseguem andar junto quando a política de poder das nações apela para a força para alcançar seus interesses. A verdade não se limita aos fatos, se está diante da espada de reis sem o vigor da sabedoria dos sensatos. Certo que a sensação ressuscita, a guerra estagnada de Vladimir Putin contra a Ucrânia é da cabeça de um desconfiado de tudo o que não duvida da sua desconfiança.

Com milhares de mortos e feridos, a Rússia fracassa no front e ataca a Ucrânia de longe sem conseguir entrar ou permanecer no território bombardeado. A antipatia histórica pelo vizinho truculento aumenta a força dos ucranianos contra o gigante saudoso do império soviético. Infeliz quem tem um mau vizinho, diz a sabedoria dos camponeses do país. Levas de ucranianos fugiram para a Polônia, que testa seu sistema de solidariedade humanitária ao acolher os imigrantes forçados.

A Ucrânia fez do pão e do sal, desde tempos ancestrais, símbolos de prosperidade e boas-vindas e tem na poesia e na música seus elevados costumes. Versos patrióticos e esperançosos são antigos e consagrados, como os do criador da sua moderna literatura, o poeta Taras Shevchenko, nascido em 1814: “Rugem as cascatas, nasce a lua, como sempre nasceu. Onde estão os nossos filhos, onde eles andam. Somente o inimigo está rindo. Ria, cruel inimigo! Mas não muito, tudo está desaparecendo, porém a glória não sumirá e contará ao mundo o que está acontecendo. De quem a verdade, de quem a injúria e de quem nós somos filhos. Nossa balada, nossa canção, não perecerá”.

Putin, no sentido próprio ou figurado, parece disposto a ir em frente arrastando o mundo para o pior. Orgulha-se do espírito traquina que tanto mal fez à Rússia Soviética ao não saber compreender a espiritualidade do povo russo. Uma guerra de governo que se deixou encurralar entre a liderança ocidental norte-americana e o milenar passo a passo da influência oriental da China. Uma guerra em que o presidente dos Estados Unidos, provocador, visita Kiev viajando de trem pelo país destroçado, dando a impressão de negligência excessiva com sua própria segurança, é do tempo de símbolos. Como é o caso, afrontoso, do balão chinês que sobrevoou os Estados Unidos – espião militar ou meteorológico – e foi derrubado por um caça na costa da Carolina do Sul.

A presunção de Putin de ensinar a única coisa que sabe e querer controlar o resultado das suas divagações belicosas pode conter a decisão de não deixar Estados Unidos, Otan e China serem capazes de coibir o que seria melhor sufocar. Sua espada é ignorante quando se faz senhora das profundezas tenebrosas que existem nos seres humanos amedrontados em busca de heróis.

Sem motivação mais elevada do que ambições territoriais, a guerra não empolga a população russa. E Putin enfrenta contratempos militares imediatos com significação cultural de longo prazo. Ao tentar deter o avanço das ideias ocidentais, mais magnânimas para a rotina da população civil, vai perdendo a hegemonia sobre os países nórdicos, vendo a vizinha Finlândia e a Suécia pedirem sua adesão à área militar da Otan.

Nações distantes começam a se movimentar. O pronunciamento do chanceler brasileiro em direção ao diálogo entre as nações interessadas na paz na região teve um sentido positivo. E ajuda a diminuir a compreensão diplomática negativa de que a expansão militar da aliança ocidental para o leste possa significar uma nova corrida armamentista, como afirma Putin sempre que pode. A legítima defesa tem suas próprias leis e cada país sabe bem o que mais o ameaça.

Não há uma balança da justiça pesando as decisões políticas nacionais. A maldade se move à vontade no mundo inferior dos belicistas. E a ONU, lenta, não tem doutrina universal ou argúcia para ser sombra reparadora. E, se a ONU pode pouco, quem poderá mais?

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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