disputas mundiais - site Paulo Delgado

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Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 03 de fevereiro de 2019.

“Hoje somos a nação mais pobre e fraca da Terra. Ocupamos a mais baixa posição nas relações internacionais. Outras pessoas afiam as facas e servem os pratos: nós somos o peixe e somos a carne”, assim afirmou Sun Yat-sen, primeiro presidente de uma China republicana, em 1924. Nem 100 anos se passaram e o atual governante, Xi Jinping, poderia gracejar o exato oposto. O caminho entre um ponto e outro, nesse caso, envolveu revolução e adaptação aos limites do sistema mundial.

As nações, ou dão conta das suas questões, ou são engolidas pelo estrangeiro. Como empresas grandes e bem organizadas, comem empresas pequenas, mas quebram se perderem a noção de seus limites. Assim é também o reino animal mal amestrado. Na natureza, só comem o que precisam, diferente do ser humano antinatural, para quem muito é pouco.

Firmas e Estados normalmente têm conhecimento exclusivo sobre o que não devem fazer. Problemas que vão desde crimes de guerra até não conformidades de regulação sobre qualidade de vida, justiça, crises nacionais com impacto internacional. Atualmente, quase tudo pode ser chamado, mais ou menos, como questão internacional. Ninguém mais tem controle sobre tudo e é saudável “cair na real” para tal fato.

A Huawei é uma empresa chinesa que ascendeu de forma meteórica para a posição de líder do mercado de infraestrutura de informação e de comunicação no mundo. Em 1º de dezembro, a herdeira e atual diretora financeira da firma foi detida no Canadá a pedido dos EUA. No fim de janeiro, procuradores americanos apresentaram formalmente o pedido de extradição da executiva para ser julgada nos EUA.  Antes disso, o embaixador do Canadá em Pequim foi retirado do cargo pelo primeiro-ministro Justin Trudeau. O embaixador canadense deu a entender que o então pedido de extradição por parte dos EUA era frágil demais e que era melhor que os EUA abandonassem a ideia. Tanto as afirmações do embaixador, quanto a firme ação de Trudeau, confirmam que, de fato, o buraco é bem mais embaixo.

Antes ainda disso, o embaixador da China no Canadá publicou uma coluna num jornal de Ottawa jogando a velha ficha chinesa de acusar humilhação. Numa linguagem gráfica e sem punhos de renda, a reação do embaixador chinês lembra o lamento acre de Sun Yat-sen, acrescido de acusação de racismo por parte dos canadenses e do “mundo ocidental” em geral.

Empresas e Estados são relutantes em compartilhar conhecimentos com o público, mesmo quando seriam úteis de imediato para seus próprios interesses. Não o fazem porque sabem que são parte de um jogo, sem fim. Há o domínio da lógica do pessoal de inteligência que não gosta que se saiba o que eles podem saber.  A assimetria de informação é um poder. Mas é bom saber que o “agente secreto” está no fim.

Na governança global, há muito receio por parte de agências de inteligência nacionais de disponibilizar informações sensíveis para Organizações Internacionais (OIs). Após o colapso da União Soviética, a cooperação internacional, inclusive o uso de OIs, aumentou muito. O caso emblemático é o da década de Guerra Civil nos Balcãs, com a traumática e bagunçada dissolução da Iugoslávia.

Para tratar de tudo de errado que ali se passou, as Nações Unidas acionaram o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. O tribunal precisava de informações que eram detidas pelas Agências de Inteligência de outros países, sobretudo europeus, a respeito do que ocorreu ali. Muitos países não queriam revelar informações, métodos e tecnologias de que dispunham. O tribunal, que funcionou até 2017, eventualmente achou um caminho ao garantir sigilo aos países que fornecessem as evidências necessárias para se fazer justiça. Conseguiu indiciar 161 pessoas, com um pouco mais da metade acabando condenadas. Mais de 50 já cumpriram a pena.

Nos últimos anos, entretanto, há um declínio no uso das OIs para intermediar conflitos, ao mesmo passo em que explodiu a espionagem e o uso da justiça nacional como massa de manobra de interesses poderosos. Não parece uma estratégia que vá realmente evitar um conflito de larga escala. Tais Organizações Internacionais podem ser as formas tradicionais burocráticas, mas podem também realizar arbitragem de forma civilizada e ajudar o mundo.

A extensão desse assunto é a mais ampla possível. Observe a calamidade humana e ambiental que ocorreu em Minas Gerais. A Vale vai ter que responder também em Nova York, onde ela vende ações. A BHP Billiton, sócia da Vale na Samarco, está sendo processada em 5 bilhões de libras em Liverpool pelo acidente de 2015 que matou 19 pessoas. Não adianta querer fazer a Terra ficar plana. O curso espontâneo da economia é um pesadelo que vira e mexe desmoraliza a riqueza sem limites.


Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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