Dois constituintes e um pelicano

Blog do Noblat – Jornal Metrópoles – 02/08/2022

Sim, há momentos em que os fatos sociais se incorporam aos fatos políticos.  Muitos, nesta hora, são criticados por serem otimistas, ou deixarem de ser inteiramente pessimistas. Este é um momento destes em que é possível ver o ressurgimento de um povo. Não é uma palavra de ordem, não precisa de slogans, nem mesmo de um programa. Poderia ter um cromatismo melhor que realçasse o branco, uma síntese de todas as cores. É um encontro de intuições, reflexões, se queremos que a política seja um fator de dinamização do humanismo e da criatividade. É hora de ouvir e escutar o mundo que nos rodeia e não deixar erodir o significado do que estamos vivendo.

Peço desculpas para citar a mim próprio, justificando com o princípio universal que diz que é sempre incompreendido o autor de uma ideia que vem antes da hora. Desde 1990 defendo a união da socialdemocracia com o movimento dos trabalhadores. Nunca achei que houvesse vanguarda de classe nas lutas políticas, mas o pluralismo das ideias múltiplas que nascem dentro do movimento social geral e progressista. Busquei a afinidade com todos os partidos onde houvesse defensores com a causa de inscrever os direitos humanos e o progresso econômico para todos no rol das coisas essenciais da vida harmoniosa e fraterna. Ganhei o apelido, um pouco carinhoso, um tanto debochado, de pelicano, meio petista, meio tucano. Tive problemas na convivência partidária interna nas campanhas por introduzir traços da cor azul em meus panfletos. Dialogava bem com os liberais modernos no parlamento.

Quando Lula e Geraldo Alckmin, dois constituintes de 1988 – formuladores dos princípios do Estado Democrático de Direito que são a regra magna da Constituição brasileira – decidiram fazer campanha juntos, minha memória acordou o esquecimento daquela velha ideia de composição suprapartidária que sempre tive. Vejo também Ciro e Simone atentos à unidade nacional buscarem construir um caminho que ofereça ao país tranquilidade.  E vendo de outro lado a paixão e o entusiasmo se associarem a atos abjetos de corsários que habitam a política compreendi o sentido pirático da eleição. Em tempos de crise, os aproveitadores da confusão dedicam-se a produzir engano nos sentidos e no sentimento do povo.

Na campanha vai ficando cada vez mais claro o sentido prático dos sinais inimagináveis destes tempos. Não se oferece ao estrangeiro parceria para violar a soberania nacional. Não se cria um Jesus para uso próprio.

No jogo superficial, e às vezes maledicente, da política sempre existe o nunca visto. Mas o governante que inventa o simulacro de um país para manipular com gestos mal-educados, marotagem e transgressões legais continuadas, sem provocar abalos imediatos no bom senso da nação e a interdição de sua aventura pessoal, não precisa ser adivinho ou astrólogo para sentir o paradoxo dramático que é continuar a vestir tal máscara no conceito de democracia.

O que está em discussão nesta eleição é um único princípio, todos são iguais ou não perante a lei. A síntese do necessário freio cada vez mais se afirma e tende a apontar para uma composição. É preferível errar com quem cumpre a lei e reconhece nos tribunais o lugar para provar sua inocência do que ter razão com quem ameaça juízes pois sabe que o que faz não tem defesa.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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