DOIS EMBAIXADORES

Correio Braziliense e Estado de Minas – 13 de setembro de 2020.

Não devemos ficar nem indiferentes nem à mercê do destino dos dois. A China não é novidade, é antiguidade. Os EUA destroem a própria obra quando atacam o edifício multilateral construído no pós-guerra. A mentira eleitoral de Trump sobre a relação com a China não altera a realidade. Foram as cadeias produtivas, estimuladas pelos EUA, que fizeram a China mais barata. Hoje, arrependem-se, pois globalização é sinônimo de Ásia, protecionismo, América.

Assim, em linguagem direta e informada, dois dos mais prestigiados embaixadores do Brasil em tempos recentes alertam o país para a vastidão das extensões presentes e suas consequências futuras no cenário internacional. Se continuarmos errando na linguagem e na ação diplomática em relação aos EUA e à China, seremos um poder declinante. As opiniões foram expressas em videoconferência organizada pelo Conselho de Economia e Política da Fecomércio de São Paulo.

Do debate podemos concluir que nem há um monstro policéfalo chamado Xi Jinping, nem um super-herói chamado Donald Trump. Há disputa pelo mercado das nações. E a nova energia mundial, que alimenta a briga, vem armazenada em chips.

Para Rubem Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington, e Marcos Azambuja, em Paris e Buenos Aires, ao abandonar sua vocação histórica de neutralidade, o Brasil colocou as convicções ideológicas do governo em rota de colisão com seus interesses econômicos. Se outra forma de relacionamento com as duas superpotências não se impuser, a diplomacia capota.

“Não podemos tomar partido na disputa entre EUA e China para ter nossa identidade mantida. Os países não têm amigos, têm interesses. A agenda de costumes e a questão ambiental nos fizeram ficar isolados em organismos internacionais, ao lado de países conservadores. Há um crescente desprestígio do Brasil”, afirmou Rubem Barbosa.

Enquanto Marcos Azambuja aponta para o fato de que “a ingenuidade é um pecado grave em diplomacia”. “Especialmente, acreditar que uma disposição amistosa, além do interesse nacional, fará os países agirem de maneira benévola ou não, de acordo com as simpatias pessoais.”

Na análise dos dois embaixadores, desde os anos 1990, os Estados Unidos isolaram-se, soberanos, numa posição predominante sem contrastes como a maior potência mundial. E seguiram exercendo forte influência direta e indireta sobre o mundo. Nos últimos anos, isso vem mudando. E, para muitos, continua um poder imenso, mas declinante.

A China foi se tornando uma potência no cenário mundial como força que desafia a hegemonia norte-americana. Os embaixadores consideram uma ironia dizer que a China é país emergente. A China é antiga, com seus 4 mil anos de história. Precisaram de apenas duas décadas, para reconfigurar o comércio internacional, passando a ser os principais parceiros para muitos países, até mesmo os EUA.

Azambuja assegura que o jogo está apenas começando. Inteligência, astúcia e realismo elevam o patamar de acerto, mas ele somente chega ao máximo com boa diplomacia. E boa diplomacia é navegar com prudência para manter a rota sem encalhar o barco. Os EUA são bons de identificar desafios, mas foram surpreendidos com uma China competitiva, cercada de inteligência artificial e alta tecnologia. Quando os jovens baixaram nos seus celulares o TikTok mais do que o Instagram, a Casa Branca sentiu na pele a competição do futuro.

Segundo Rubem Barbosa, que era o embaixador em Washington quando foi editada a doutrina de segurança nacional pelo presidente George W. Bush, os EUA passaram a reagir a qualquer ameaça que afete seus interesses. “Em decorrência dessa visão, hoje o establishment americano considera a China como um adversário que ameaça os interesses concretos nas áreas comercial, tecnológica, militar e estratégica.”

Os EUA, lista Barbosa, já adotaram uma série de medidas negativas contra o Brasil. Suspenderam a importação de 80% da produção de aço; apresentaram um candidato norte-americano à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), não prestigiando o candidato brasileiro; fizeram pressão sobre o etanol nacional para eliminar tarifas; não atenderam ao pedido do governo para facilitar os vistos de entrada de brasileiros. Outro fato relevante foi pressionarem para o adiamento do leilão da tecnologia 5G para o ano que vem. Ou seja, os EUA querem o Brasil fora do controle geopolítico da internet.

E, sintetiza Azambuja, “o Brasil abandonou a visão de si mesmo, como uma potência multinacional, multirracial, multi-ideológica, multirreligiosa, para ser um país sectário, correspondendo apenas a uma visão limitada do seu interesse imediato”.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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