Escravidão tecnológica está em curso e tem sido grande fonte de ofensas

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A necessidade, como estado emocional de carência, é da categoria da vida psicológica e não deveria produzir tanta especulação sobre seu papel na hierarquia das satisfações.  Valorizar demais a dimensão da necessidade faz aumentar muito a frustração e a dominação. A teoria da necessidade não deve ser associada à ideia da obrigatoriedade. O perigo da necessidade se instalar de forma opressiva na cabeça da pessoa é uma tendência real do mundo atual, em todos os países e áreas. Resistir a este abuso pode fazer o ser humano mais feliz.

É uma espécie de automação o comportamento de médicos, esteticistas, juízes, advogados, arquitetos e detetives passarem da conta quando se acham mais importantes do que o caso ou a causa que analisam. Querer saber mais do que o paciente e confiar totalmente em aparelhos e remédios; uniformizar o rosto e o sorriso de todos os que os procuram; julgar com base em preconceitos pessoais e não nos fatos, atos e no que está na lei; piorar um caso para cobrar mais pela cara do cliente; fazer projetos de casa para fotos de revista e não para conforto e convivência; simular situações para contornar dificuldades de investigação – são situações corriqueiras e desagradáveis. Inventar produtos e necessidades está virando moda no mundo da inovação e da automação e tirando o foco da maioria para o que é realmente fundamental na vida.

Na indústria militar o mundo caminha para a ilusão da guerra limpa, sem contato entre os combatentes, como se matar a distância fosse eticamente superior do que dar uma facada à queima roupa. A inteligência artificial e o uso de robôs industriais e afins tiram os seres humanos do centro das decisões e a força de trabalho mundial caminha para perder mais de 50 por cento dos postos de trabalho para máquinas e seus derivados. Na escada do progresso mundial benefícios financeiros não deveriam conter desejos superiores aos benefícios sociais.

Aumentar lucros, diminuir custos, acelerar a produtividade, sem se preocupar com a melhoria da performance e da criatividade humana no trabalho é um tipo maléfico de automação que pode produzir inesperados prejuízos. Não há nada engenhoso que não tenha sido inventado por pessoas engenhosas. Nada será engenhoso se não for projetado e usado para ser monitorado e controlado por seres humanos com capacidade de compreender, intervir e corrigir máquinas e sistemas tecnológicos.

A escravidão tecnológica está em curso e tem sido uma grande fonte de ofensas, abusos e ações ilegais. Até nos conceitos filosóficos mínimos que fundamentam a boa educação, linguagem e relações pessoais, a engenharia dos sistemas autônomos (que fornece aparelhos e máquinas para uso em casa, no trabalho, lazer e em trânsito), está contribuindo para que os seres humanos fiquem com um comportamento pior e mais egoísta.  A ética dos sistemas autônomos, robóticos e da inteligência artificial se continuar a andar a passos lentos e com fundamentos meramente econômicos, não vai aumentar o bem-estar, a segurança privada ou coletiva e a civilidade humana.

A automação dá celebridade ao distraído, faz o mundo homogêneo, amplia rotinas, cria uma espécie de irresponsabilidade organizada que diminui o nível da sensibilidade pública. Viver bem no mundo não é mais consequência de virtudes morais e o êxito de muitos não depende mais de habilidades derivadas de relações humanas virtuosas. Robôs, máquinas, tecnologia, biometria, aplicativos, porteiros eletrônicos, algoritmos, caminhos virtuais, assistentes pessoais virtuais, etc. A interação artificial roubou da inteligência o nome e criou uma realidade de segunda classe desinteressada da beleza do diálogo e do convívio humano.

Não deve ser considerado um escândalo considerar algumas invenções inúteis que por serem toleradas, logo são legitimadas. A que serve para fabricar tais produtos não é dúvida impenetrável e permite fazer a distinção entre necessidade falsa e verdadeira. Na vida, como em alguns veículos, nem todas as rodas precisam rodar. O que deveria importar na produção e oferta de necessidades é se aquilo contribui ou não para diminuir o sofrimento humano. Esta seria uma boa forma de valorizar as coisas e um caminho para nos livrarmos das preocupações econômicas, sociais e psicológicas que derivam do uso das necessidades desnecessárias.

Através do prazer de apreciar a arte temos uma melhor forma de aliviar a tensão entre o real e o possível. Arte, um caso de consumo aparentemente inútil que nos reconcilia com a ideia da utilidade e do sentido prático das coisas subjetivas, elevando o sentido humano de necessidade.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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