Fãs e amigos da onça

Ainda não estamos na fase da traição e do abuso da confiança que marca nosso presidencialismo. Mas já vemos atrasos e danos. Para analisar de forma desengajada é preciso se convencer de que adesão ou oposição automática são burrices da vida política. É a comodidade da ideologia que leva o governo à impertinência de preferir a dificuldade de governar para uns à felicidade que é poder governar para todos.

“Jogue fora a luz, a definição. Diga lá o que você vê na escuridão.” A surpreendente falta de energia da economia, mesmo com inflação controlada, com crônico baixo crescimento, pouca capacidade de atrair investimento e de diminuir a desconfiança de quem dá emprego, não permite à família planejar o seu futuro e pode identificar uma estagnação estrutural ou ausência de foco na compreensão da nação que realmente somos. Mãos à obra, é impossível dirigir o Estado na forma como ele foi desenhado.

Embora o processo político nunca cumpra uma trajetória linear, a análise dos cem dias de governo não deve ser uma anamnese, essa mania de ouvir eleitor sobre dores que não sente, como quem faz exame médico só porque tem plano de saúde. A endoscopia invasiva da pesquisa produz um resultado muito parecido com as próprias perguntas. O momento não é de guerra fria, é de guerra quente e visível. Especialmente em razão do baixo equilíbrio institucional alcançado até aqui e da permanência dos traços de personalidade eleitoral do presidente.

Parece claro o seu desinteresse em convergir para uma posição de centro, relacionar-se melhor com a cúpula dos Poderes, diminuir o noticiário negativo e, assim, melhor acomodar as forças parlamentares e partidárias, que continuam desorganizadamente em ação. Como não conseguiu ver andar nenhum dos seus projetos e medidas provisórias enviados ao Congresso, é compreensível que use microblogs como tábua de salvação, desvinculados de qualquer estratégia coletiva de governo. O consolo é que a fase atual é de desapontamento, não de frustração.

O governo tem uma confusa matriz decisória, com a dupla Guedes-Moro, seus principais animadores políticos. O presidente tem uma mentalidade defensiva, reforçada pela linguagem agressiva e politicamente debilitante. Não temos na sua figura um liberal à la Thatcher que possa deter, pela autoridade e pela convicção, o custo da sabotagem política à abertura econômica. O que se vê na Bolsa, no dólar, nos indicadores de confiança e na paralisia econômica são consequências do caótico e desencontrado centro de decisão, com diferentes atores tentando se afirmar sobre um pano de fundo, interno e externo, em que alguns alinhados se comportam como porca que come sua ninhada.

Pelo que tenho visto, está mantida a tradição brasileira da paz violenta em todos os setores, marcada pela predominância da rixa política sobre a busca do desenvolvimento econômico. Brigar ajuda a ocultar os reveses de governo insincero no desejo de mudança. Para os militares, seus movimentos imprudentes na política externa podem estar deixando claro que ele tem uma perspectiva ingênua da instrumentalidade das Forças Armadas, tanto como capacidade permanente de dissuasão infalível, na sociedade civil, quanto como potencial ilimitado de condução de poder, na sociedade global.

A comunicação direta com seu público alimenta um mandato de fãs. Melhor seria apostar na influência da persuasão na sociedade organizada e no establishment econômico, pois, agenda liberal em economia burocratizada, sem os princípios da ordem espontânea, não funciona. Outro ponto dispersivo é a ilusão belicosa de afirmar identidade própria usando o contrapensamento. Não é de pregadores morais que o Brasil sente falta, é de líderes. Um MEC ácido e um Itamaraty impalatável são leões sem dentes, apenas passatempos nacionais.

A lógica do conflito sempre serviu a governos que querem atribuir a outros a responsabilidade por seus problemas. No caso atual está estimulando o surgimento de ativos esconderijos parlamentaristas. Não vejo vantagem em tirar do Congresso o seu maior orgulho, que sempre foi o de apoiar o governo.

Os parlamentares lutam para construir uma identidade, mas o destaque é para o celular, o ogro do político atual. O Congresso quer dosar oxigenação online com amadorismo presencial e Paulo Guedes foi a primeira grande vítima desse charlatanismo. Uma base desprestigiada ouve calada desaforos ensaiados por 20 anos. Há muita coisa velha fantasiada de nova. Todavia podemos dizer que, se nada está em rota de aprovação, nada, também, sofreu nenhum abalo fatal. O maior problema é o presidente continuar ambíguo em relação à defesa da modernização previdenciária tornando fracas as chances de a reforma ter a amplitude imaginada pela equipe econômica.

Nessa mistura de tensões e perspectivas sobressaem mais inércia e jogos ocultos do que crise política. Como o presidente foi eleito para dificultar a vida dos políticos tradicionais, parece que decidiu que o custo político da agenda das reformas deve ser assumido por cada poder separadamente. Melhor se dar conta de que, se o governo se movimenta de flanco, resta ao Congresso o rompimento frontal. Desde Otelo é o desprezo que leva ao ciúme.

O jogo oculto é poder estar em curso uma estratégia de impasse dentro da ideia de renovação por caos e uma certa indiferença estudada aos procedimentos protocolares. O conformismo da sociedade, conectada às bobagens das redes sociais, ajuda. E o prestígio mundial da autonegação da política pode dar curso a um experimento desaconselhável. Aventura de amigos da onça que querem ver o presidente romper os dois pilares da lealdade em combate: desconsiderar a distribuição ordenada do poder na hierarquia e considerar coragem, e não erro inominável, atentar contra os próprios.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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