FOGO MORTO

O Estado de S. Paulo – 13 de maio de 2020.

Como um Ranger no Vietnã, sem estratégia, subestimando adversário e adepto do comando sem controle o presidente não liga para a relação entre aceleração e derrapagem. 

No jogo das cartas ocultas se sente o controlador que opera com inteligência falsa para ativar análises estapafúrdias sobre ele:  importante não é o que faço, é como os outros reagem ao que faço. 

O coronavirus desmilitarizou o patriotismo e fez da área da saúde o lugar onde a pátria observa seus heróis. O soldado, sem capacidade crítica, levou para o lado pessoal e afogou o médico no rio do ciúme eleitoral. Para chegar a outra margem sem processar a frustação de não mandar, xingou o juiz, ameaçando seu reino por um cavalo de Troia na PF-RJ – onde condomínio, porto, milhões e facções, mais hackers familiares, formam os nós da rede que o atormenta.  

Cada reação de um poder contra o outro o ajuda a compor o rosto Frankenstein da democracia como a concebe. Não é nada sofisticado, nem exige força bruta aparente. O que observa é a água que ferve, não o fogo que a estimula. E vê a umidade infiltrar na casa velha do presidencialismo como um teste para calibrar o grau de imunidade à lei que precisa alcançar. Dança na chuva: não é dilúvio, também não é garoa.

A tática que adota é crua e combina autoconfiança e afronta. Já tossiu na frente de apoiadores, agride jornalistas com frequência, berrou impropérios em frente ao Quartel General, entrou no Supremo sem bater na porta, passa na conversa terno, farda, paisano. Testou a frieza do coração sem luto propondo disfarçar a morte em churrasco funerário. Cancelou, trocou por pedalinho. O ritual perverso transcendia a necessidade de comer o outro.  

Procura, obstinadamente, compartilhar o estopim: como é inútil para o mau agir se não puder confiar nos bons.

O presidente é o mais ostensivo usuário dos defeitos do presidencialismo no período democrático. Seu governo, um círculo de giz sobre a cabeça da nação, é uma equação ainda obscura para a maioria: só é possível alguém agir assim em regime não sério assim. Ele finge querer mudar o padrão que a cada governo acrescenta uma doença. Conhece a lógica da coisa: conduz todos para a cozinha e os submete ao tempero do poder. Busca convencer os comensais a não ler o cardápio constitucional. 

Como todos estão vendo, ele está destarrachando devagar o parafuso da porca dos costumes como antidemocrata tarimbado, calculadamente. A justiça, que alimenta os seus com suas férias de três meses, nada sabe dos males que a ferrugem dos privilégios na engrenagem dos tribunais provoca. Juiz de televisão costuma ser raso em equidade e temperança, usa mal a chave de fenda que aperta a porca do parafuso do arbítrio. Para se precaver a Câmara, ajuizada, deixa o Supremo se redimir escrevendo o roteiro do enredo. 

O estilo ultra realista que pratica, tem uma fermentação que apodrece o ambiente a que se dirige. Em especial quando acaba destampando o código secreto por trás das coisas em que mete o nariz.  Realmente, “amor à primeira vista” parece ser um código. Porque não tem preço a sensação de receber do STJ a aprazível sentença de que presidente da República é simples e do povo e não deve satisfação sobre sua vida. Um “Meu Pé de Laranja Lima” judicial é o melhor laissez-passer para quem quer mobilidade para agir sem ser incomodado. 

Aparentemente não há padrão. Mas para analisar as reações que provoca ele indica o alvo e personifica o ataque. Entender o porquê da escolha desses alvos não é a linha da análise mais correta. Os alvos – Imprensa, Congresso, Forças Armadas, Supremo, Empresários, Governadores, Oposição, Economia, Coronavirus – dizem menos sobre ele do que sobre as coisas e as reações que provoca quando ataca, elogia, insinua, recua, desconversa. 

Ele quer ter o controle da resposta no mesmo lugar ou situação onde acha que pode ser paralisado. O déficit de moralidade que procura nas instituições é necessário ao seu controle. Ele sente que precisa de mais acesso aos detentores de cargo público, um grupo específico que ele conhece bem e que tende à incoerência a cada eleição.

 Está atrás de fragmentos naqueles lugares da capital que fedem à dissidência política onde são costurados os pecados e que poderiam compor o padrão dos usuários do Estado, essencial para montar seu quebra-cabeças. Precisa agir rápido para que o oportunismo veja mais vantagens em aderir a ele, do que ser engolfado pelas vantagens que a distorções da democracia presidencialista oferece.

O presidencialismo é um prédio condenado, pichado, onde cada um que entra nele se instala em seu andar lixando para a opinião pública. É deste imóvel reformado, que vem desabando pouco a pouco, que o país é dirigido há mais de 30 anos. Foi aqui que o humano-inesperado esbarrou no muro do coronavirus e encontrou como síndico do espigão um presidente ambicioso que roda como biruta.  

Um presidente ardendo em fogo morto, misturado nas cinzas do arcaico presidencialismo brasileiro, como se fosse um coronel dos velhos engenhos de cana queimando seu poder no bagaço das perfídias em extinção.

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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