MILHÕES DE WHATSAPP E BRUXAS

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 5 de Agosto de 2018.

Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia desde 2014, fazia um discurso no interior do estado de Bengala Ocidental quando uma tenda que protegia o público da chuva desabou, levando quase 100 pessoas para o hospital. O evento ocorreu no dia 16 de julho, semana anterior ao embarque de Modi para a cimeira dos Brics em Joanesburgo. Ao retornar a Nova Délhi, as investigações sobre o acidente já estavam sobre sua mesa.

A parte central do inquérito está focada no fato de que as principais autoridades locais de alto escalão responsáveis pela segurança não estavam presentes no comício, algo estranho em se tratando de uma visita do chefe do governo nacional.

No momento que a tenda desabou, Modi vociferava contra a principal liderança política do estado, Mamata Banerjee, uma das mais famosas dissidentes bem-sucedidas do Partido do Congresso. Mamata é a ministra-chefe da Bengala Ocidental, o que corresponde ao principal cargo executivo dos estados regionais na Índia.

A partir da capital, Calcutá, Mamata comanda um estado com a quarta maior população do país. Seu partido, o Trinamool, foi fundado em 1998 com dissidentes da agremiação vinculada à família Gandhi. Hoje em dia, ela busca formar com os Gandhi, derrotados pelo Partido do Povo Indiano (BJP) de Modi nas últimas eleições nacionais em 2014, uma frente ampla de oposição ao atual primeiro-ministro.

As eleições nacionais indianas ocorrem no primeiro semestre do ano que vem, mas, com eleições nacional e regionais desvinculadas, todo ano é ano de eleição. Modi é um peixe n’água em tal ambiente. Seu mantra, repetido em comícios, é o de levar a Índia de um país lembrado no mundo por encantadores de serpente e feiticeiros para um de mestres da tecnologia da informação (TI). Parece um Rodrigues Alves buscando vacinar e sanear todo o Rio de Janeiro para combater a imagem de pestilência e insalubridade vinculada ao Brasil na época. A diferença é que Modi foca em habilidades tecnológicas e crescimento econômico. Sua briga é contra a visão da Índia como um lugar atrasado. E, em meio à revolução tecnológica atual, com sua hiperconectividade e grande importância da TI, a Índia está muito bem posicionada e desbancando a China no setor.

A briga pela condução do país está animadíssima. Mas não é nada tecnológica a versão do boicote no acidente do comício na Bengala Ocidental, governada por sua adversária. Impossível apurar a ação das bruxas da velha Índia, que sopram durante as chuvas para fazer os temporais.

Modi, enfático e hábil líder nacionalista hindu, tem um aplicativo por meio do qual divulga suas ideias e pede opiniões e sugestões da população inscrita. Ainda que ele só tenha sido baixado umas 5 milhões de vezes, já vem instalado em cerca de 40 milhões de celulares de baixo custo comercializados pela telefônica Reliance Jio. O uso e abuso de redes sociais criou o idiota transdisciplinar, o bruxo virtual do mundo sem lei.

Ao contrário do controle central que Pequim exerce sobre a circulação de notícias, na Índia o alastramento de rumores e (des)informação é avassalador. Algumas vezes com resultados deploráveis. Especialmente em meio aos 200 milhões de usuários do WhatsApp, o maior mercado no mundo para o aplicativo. O governo Modi anunciou no início de 2018 desejar colocar no Ministério da Informação uma central de acompanhamento das Mídias Sociais capaz de recolher dados que ajudem o governo a tomar o pulso do país e identificar focos de agitação criminosa. No ambiente democrático indiano, a proposta vem sendo rechaçada pelos riscos de descambar em vigilância em massa. Todavia, é interessante por ser proposta feita de forma pública e não oculta sob manto de segredo de segurança nacional como feito em outras democracias.

Como Modi tem o poder nas mãos sobre a maior democracia do mundo, o escrutínio sobre suas táticas atrai muita atenção. Inclusive para antever o lugar que nossa época realmente almeja para si e para líderes controversamente influentes enfiando veneno no caldeirão do Google, Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp.

“Seu estilo não é tão brutal quanto o de Putin ou Erdogan; nem tão selvagem quanto Trump ou do filipino Duterte. E ele está sujeito a muito mais pesos e contrapesos do que Xi Jinping”, avaliou recentemente Gideon Rachman para o Financial Times. Mas a forma como Modi buscará a reeleição em 2019 tem tudo para ficar no limite da interseção entre os ritos democráticos e a tecnologia atual, por um lado, com flertes autocráticos nas sombras cinzentas da lei. Se ele tiver sucesso em atravessar esse caminho continuando no campo democrático, será um alento para a democracia no mundo todo.

 

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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