O Brasil que pode dizer não

O Estado de S. Paulo – 8 de setembro de 2021

Onde os extremos se tocam: o populismo e o radicalismo buscam o mesmo indivíduo sem perspectiva. O de esquerda fala o que o povo quer ouvir, o de direita o que o povo quer falar. Fanáticos, o que importa é o exagero. O fanatismo tem um só inimigo, a pessoa livre. Mesmo sentindo o Brasil fanatizado o passo mais importante ainda não foi dado. É a decisão do Brasil que pode dizer não. O que temos agora é anomalia, nome do caminho acidentado em que política, economia e sociedade vivem programada desarmonia.

A situação se tornou desanimante em virtude da pastoral de lobos que fustiga continuamente essas três áreas essenciais da vida.  A estratégia de governo fraco é velha conhecida. Busca converter perda de legitimidade em dominação opressiva para testar a capacidade de superar o declínio da autoridade.

Até agora o caminho superlativo escolhido reforça dons alienados do caráter nacional. Por subserviência, incoerência ou interesse passageiro o país vem tendo uma reação vagarosa como se a política não fosse capaz de coisa melhor. Assim, a todo custo, cheia de dedos, a democracia trata este espírito dúplice que habita o Palácio como uma mimosa pudica com cinturão de homem bomba.  Não pode ser contrariado, interposto em argumento pois explode em iniquidades.  

Por outro lado, a ruina da linguagem pública já era  moda confundindo hábitos de rua com popularidade. Aqueles que tratam suas dívidas políticas na função crédito e querem da política mais do que ela pode dar exigem promessa e fúria contra o status quo.  Criaram os campeões da mais destorcida maneira de disputar o voto do eleitor, um seu igual.  Xingar a verdade, inventar uma foto, ameaçar e mentir. Eleições iníquas têm feito a ascensão e a queda de vitoriosos no Brasil. 

Tem sido desconcertante ser cidadão brasileiro. A sonoridade ruim do discurso e a maldade de propósitos dos eleitos produziu o ciclo furioso que caracteriza esta política que chegou ao limite. A nocividade do poder é autônoma, determinada pela natureza do eleito. Para fechar o país à enfermidade é hora de não esperar nada de discurso patogênico. Melhor ser um país tranquilo, onde a política é importante, mas não inútil como agora. 

A resistência do governo à acomodação é um alerta à democracia e começa a refletir o caráter de instituições relevantes. Ao colarinho clerical já passa da hora de ler velhas epístolas e abandonar o charlatanismo religioso dentro do discurso político usado para enganar crentes. À farda, seria bom se afastar rapidamente de articuladores militares que fingem pensar como civis e dos civis que querem se fazer passar por militares. É de envergonhar os anjos a pregação de igrejas governistas. É normal na democracia um país ter um exército, mas não é normal um exército ter um país.

Nosso modelo político é um fracasso e dele o povo se afastou.  Desligado, pessimista, prostrado moral e pessoalmente, com a maioria suportando ferimentos terríveis no dia a dia, o eleitor passou a ver a marcha dos acontecimentos sem considerar coisas adversas. Para a histeria de ontem não tem penitencia. É uma vergonha tanto pecado ao mesmo tempo. A perturbação do governante agravou a doença das instituições que aceitaram o duelo nos seus termos. É difícil imaginar que povo livre queira recuperar a iniciativa sem novas lideranças independentes.  

Engana-se quem vê sono ou surdez na indiferença popular e tenta chamar a atenção usando linguagem que provoca barulho e controvérsia.

A subitaneidade dos trânsitos, do possível e do  inconveniente na internet, fez o discurso perder de vez a racionalidade, estimulando a amnésia. O país está preso em um engarrafamento sem condições de harmonizar as necessidades de progresso econômico com a melhoria da vida social. Na internet, usada como veneno, a pior parte é a que funciona. É preciso alguém capaz de redirecionar o trafego da atenção do país. Expirou o prazo do discernimento. A sociedade da sensação e da emoção fez da opinião pública uma correnteza de mexericos, tramas e enredos cuja força é impossível aquilatar.  O dia na rede é movido a boato. E o boato, pela sua natureza, quer é circular, como furação que não recua.   

Mas há um Brasil que busca alguém capaz de recuperar a magnanimidade da política. Alguém de influência e discernimento abrindo opções para a consciência e a liberdade atuarem. Um extra ideologia, naturalmente moderado e de paz, sem vingança, que saiba o que fazer com o poder. A infelicidade de hoje se mistura com os males de ontem e a prosperidade do futuro não estará lá se a política continuar tão egoreferente e amante de si própria. Alguém irrepreensível na conduta pública, para que quem for do contra se confunda. Que tenha temor à lei, seguro dos princípios da nação que busca governar.

Poucos apoiam hoje alguma causa política de coração.  A crise econômica é bem menor do que a crise da democracia. Sintoma disso é sua incapacidade de se desenrascar desse crepúsculo antiquado no poder. Sua melhor defesa é ajudar a recriá-la com mais luz.

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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