O Estado de S. Paulo – 11 de novembro de 2020.
Com a casa desarrumada e indiferente a problemas mundiais os EUA contam voto como quem joga dama à luz de vela. Aqui, uns alguéns atordoados, se enganam, como se Deus lhes tivesse tirado o arrependimento.
Joe Biden, diferente de Trump e Bush filho, mas como Obama, Reagan e Bush pai, recebeu os dois tickets de entrada para morar na Casa Branca, o do voto popular e o da república federal. O ocorrido, sem querer ser inamistoso, lembra metáforas do meu avô. O boi é bonito no pasto, mas um desastre no jardim. Bezerro, não se bota no arado.
Parece bíblico, tudo na eleição é dádiva. Um cai na teia da própria ira. Outro pede caridade e recebe justiça para reconstruir sem derrubar.
O pior da eleição é a ênfase. Ao encolher o mundo de tal maneira toda campanha é charlatanice, emoção como clichê. Não é a ética da coisa. Nada, nem a guerra, tem o poder de lacrar tudo. A vida, teimosamente, prefere o movimento.
O que de melhor vi da eleição foi a beleza dos mapas de apuração. O azul da água na borda dos dois oceanos acolher a nitidez do vermelho da terra do interior do país. Uma sintetize cromática de partidos reais, opção que confirma a excelência secular da simbiose Voto Popular-Colégio Eleitoral calibrando a qualidade da popularidade. Trump brigou mais, Biden apanhou menos. E com autonomia local é inútil um TSE.
A apropriação partidária de afinidades ou rejeições pessoais não é a fruta envenenada da polarização – um conceito impermeável, ordem blindada, não uma opinião. O que há em nossa América é a mais pura dispersão, solidão de minorias, diante de uma sociedade que não processa a reciprocidade das vantagens do bem e do progresso, mas é rápida em estigmatizar a ansiedade. Mudou o mundo, foram-se as maiorias. Mas tal equilíbrio heterogêneo não é abismo mortal. É água agitada que varia de volume a cada eleição. Biden foi só mais líquido do que Trump.
E nesta inundação pela superioridade eleitoral foi fácil admirar o modesto Biden, mesmo errado, mais do que o exuberante Trump, quando certo. Pois Biden percebeu que cada um, com sua circunstância, pode bem se desviar do pensamento que angustia e preferir aderir a alguém, mais do que combater o outro. E a concertação que fez para vencer incluiu a captura dos dois votos – da Sociedade e do Estado – livrando a pessoa de se preocupar com a gestão da sua mente, como negligencia Trump, ao atormentar o eleitor com sua agitação.
Não existe somente um negro, branco, mulher, cristão, jovem, aposentado, trabalhador, desempregado, imigrante. Cada um com seu mundo de satisfação e afronta sabe que a lua cheia logo passa a ser minguante.
Se a vida não for vista como uma doença da política vermelho e azul se ajeitam. Biden fingiu ser dominado pela conversa de Trump e sua nova maneira de ser velho. Preferiu a velha maneira de ser novo e, como Robert Frost, percebendo que o país se bifurcava, tomou outro caminho menos pisado. E foi o caminho que ele não tomou que derrotou a Trump.
O maior erro de Trump é a poluição ambiental que exala. Imaginou seu país uma floresta de gigantes sem perceber, como Walt Whitman, do que é feita a humana condição. Para observar a simpatia da pessoa melhor que a olhemos nítida como árvore. Bradou ao país da prepotência, aprumou contra si quem não quer correr tantos perigos. Lavrou uma imagem falsa e fraca do voto popular. Talvez porque não sendo por ele derrotado a primeira vez supôs poder menosprezá-lo outra vez. Fraude. Não admito nocaute se a multidão eu convoquei! O Covid e o Correio contemporizaram: Biden venceu por pontos, Trump quase não perdeu.
Trump encontrou na presidência um lugar apto para poder ir com excesso a tudo. Não experimentou nenhum efeito que o detivesse, mesmo levado a impeachment. Diante da pandemia nenhuma gradação que pudesse evitar o mal e aumentar o bem. Recebeu o poder sem que a razão lhe ensinasse o uso. Deu tanta liberdade à sua ansiedade e ambição que mostrou por onde sua graça flui. Ao dogmatizar tudo e não aceitar ser contrariado, sua rudeza mostrou que não melhora com o tempo. E agora, sem o mundo nas costas, Atlas se desestabiliza projetando lamuriosa imagem ruim. Apesar da espetacular votação se faz moralmente um perdedor.
Não é sério quem folga na força do voto. Com uma cédula de papel um cidadão sem escolta ou armadura, agarrado ao dever e à esperança é um David sem funda. Não deve o vitorioso nunca se gabar de sua força. A maioria dos eleitores corre o risco de nada obter com aquele voto, além do direito de exercê-lo.
Quando o presidente entrou na justiça pedindo para interromper a contagem porque sua campanha não teve acesso aos locais de apuração, senti que agonizou. É tão insanamente baixa a régua da regulação da atitude presidencial que ao pedir “acesso significativo” me veio o sentido oculto do desejo. Num país que vota quem quer, em dia normal, correio é urna, apuração singela, é bem anacrônica a desconfiança que a petição explicita.
Que Biden não seja decepção, o mais comum dos caminhos que a política nos oferece.
Leia também no Estadão.
Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. This category only includes cookies that ensures basic functionalities and security features of the website. These cookies do not store any personal information.
Any cookies that may not be particularly necessary for the website to function and is used specifically to collect user personal data via analytics, ads, other embedded contents are termed as non-necessary cookies. It is mandatory to procure user consent prior to running these cookies on your website.