O diplomata da guerra morreu

Ele tinha o Estados Unidos como civilização pessoal e se dedicou a vida inteira a americanizar o mundo. Sabia que um sistema de poder, para durar, é sempre superior às pessoas que imaginam dirigi-lo. Nascido na Alemanha, refugiado que se tornou sargento do exército, voltou ao país que o expulsou para derrotar o nazismo. A fascinante, polêmica e verdadeiramente ativa vida do diplomata Henry Kissinger terminou mês passado em Connecticut, Estados Unidos. Tanta desordem e desarmonia o fez constatar que o mundo vivia uma destrutividade sem precedentes.

Kissinger recebeu o mais contestado e precipitado Prêmio Nobel da Paz por uma guerra que não tinha acabado. Dividiu com o Comitê Norueguês, que o concede, o constrangimento de ver Le Duc Tho não aceitar a honraria, único até hoje a recusar o prêmio. O líder vietnamita considerou incompleto e insuficiente o Acordo de Paris que previa terminar o conflito e restaurar a paz no Vietnã.

Secretário de Estado, embaixador, aconselhador formal e informal do Congresso e de presidentes norte-americanos, tinha uma consciência própria da ordem internacional, convergente para o lado conservador, divergente das experiências mais à esquerda. Da embrulhada que fez na América Latina a região jamais se desfez. Por seu utilitário conceito de democracia boa ou ruim, era fácil admitir, justificar ou não deter aliados rudes, adeptos de convulsões sociais violentas, execução de opositores e desestabilização de governos constitucionalmente eleitos, como ocorreu no Brasil, no Chile e na Argentina. O que não o impedia de patrocinar belos espetáculos multilaterais, chupando um pouco de luz da ideologia da guerra fria, ao aproximar os Estados Unidos da China e conseguir tratados de controle para limitar a produção de armas nucleares com a União Soviética.

Estadista de um mundo que sempre faz vista grossa à bagunça de aliados, viu emergirem e submergirem líderes regionais sem estatura mundial. Melhorou suas redondilhas retóricas ao buscar equilibrar interesses militares de segurança armada com o discurso mais amplamente aceitável de elogiar governos democráticos comprometidos com direitos humanos. Kissinger foi um equilibrista habitual e fenomenal. Sua balança diante de acontecimentos terríveis fruto de catástrofes políticas nacionais pendia sempre mais para a intervenção do que o diálogo.

Envelheceu soberano e, unânime, passou um sabão na soberba americana convidando intelectuais e políticos a aceitarem o duelo com a herança europeia e se renderem à ascensão asiática, se quisessem formular atitudes mais recomendáveis para consolidar a inequívoca liderança mundial dos Estados Unidos. Um antípoda do diplomata finório que cuida mais da carreira do que de ideias adequadas. Burilou a expressão “projeto moral americano” para encarar o século 21, definindo como fundamental à tradição ocidental manter o discurso da liberdade ajustado às novas necessidades de entrelaçamentos econômicos. Inventou uma combinação de realismo e idealismo, convencendo a Casa Branca de que a águia americana voaria melhor se esses dois elementos não fossem vistos como opostos e incompatíveis.

Deu opinião sobre tudo como um dos mais prestigiados consultores do mundo. Inclusive, ajudou na contratação de Pelé pelo New York Cosmos para melhor propagar o futebol nos Estados Unidos. Meteu-se no Oriente Médio, buscou explicar a mentalidade teocrática e estadista islâmica, as razões de Israel, a questão da Palestina, a noção de lei e ordem do Irã, da Síria e das obsoletas monarquias árabes. Ajudou a formular a multiplicidade das concepções de poder e influência na Ásia, atento ao Japão, à Indonésia, à Índia, à Coreia e à China. Nunca descuidou das sandices da Coreia do Norte. Admirador da democracia europeia e do escudo militar da Otan como maiores aliados dos Estados Unidos, dava mais atenção às guerras entre Estados do que à vida das pessoas comuns. Até que a violência não estatal de grupos civis, paramilitares, terrorismo, alertou às potências atômicas que a realidade venceu a teoria. E que a criminalidade é tão inimiga da ordem mundial como dispor de meios de destruição total.

A ilusão de Henry Kissinger de que os Estados Unidos cumpririam seu papel geopolítico, econômico e cultural imperativo e incontestável não se tornou realidade. Não é possível traduzir culturas divergentes num sistema comum. Aliás, nenhum país resumirá todos os outros. As estruturas culturais, os nacionalismos, preconceitos e exageros diversos não permitiram a criação de valores universais respeitados por todos onde as populações civis tenham direitos não violados. Uma ordem jurídica unilateral não se sustenta, e a multilateral não se afirmou, por mais que se tente.

É impossível saber qual o resultado dos atos pensados e impensados dos governantes. Na história humana, a maior parte é rascunho. Henry Kissinger, tendo atravessado o século com poder e influência, é uma exceção entre aqueles que viveram as consequências do que fizeram. Bem ou mal, o que ele fez ele viu. E, como assumiu a prevalência de suas ações sobre tantos fatos mundiais, que tenha ido em paz com sua consciência acertar as contas com o Deus de todos nós.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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