O Estado de S. Paulo – 14 de novembro de 2018.

A esquerda observa as pessoas em cachos, como se quisesse formar pencas de gente igual. Movimento, silêncio não despertam atenção, diferente do que observa o narrador de Edgar Allan Poe no conto O Homem da Multidão. O povo percebeu a manobra e tornou mais pobre ainda a experiência da política, em que o eleitor é mero objeto de consumo. Foi um sentimento de solidão que o levou a reagir e disparar sua opinião de costas para os partidos. Toda eleição tem um polo do poder e um polo da liberdade. Nesta o poder foi representado pela esquerda e a liberdade, pela direita. Foi assim que a decisão se deslocou para fora do alcance da política velha.

Com um só olhar, a eleição que terminou foi a rebelião do horizontal. Amontoado como mercadoria num armazém, o eleitor-freguês olhou a saída sem ligar para vendedores perpendiculares a ele, verticais, na linha contrária ao horizonte. A maioria não aceitava mais que lhes empurrassem suas verdades. Foi ele, o eleitor, que escolheu, desde o início, um candidato para levar. Um candidato-aplicativo, sem intermediário, em sintonia com os conteúdos objetivos, os desejos e os fantasmas do eleitor. A farda é um detalhe que está aí no inconsciente do País. Não importa se passou ou não pela sua cabeça o mito purificador tenentista; o capitão Prestes, que dirigiu com mão de ferro o mais importante partido de esquerda da história do País; a sina que é constatar que ao cansaço do populismo de Getúlio se seguiu um marechal; de Jânio-Jango, oito generais; e de Lula-Dilma, um capitão e um general.

Uma eleição de eleitor incomodado, árbitro de si mesmo, sem dono, usando plataforma própria. Embebida em truques, delitos e destino, bloqueou donos de poder. Por exemplo: o prognóstico da decadência feito de forma confortavelmente entorpecida pelo velho roqueiro; a manipulação do fascismo pela universidade que só o sente à direita, na ruína da linguagem pública, e o esconde à esquerda, dando outro nome ao Estado-sindical-corporativo. O envolvimento emocional-depressivo-opressivo do Supremo com Lula, deixando entrever ao País que os dois podem tudo. A tardia indignação com a grosseria vocabular do deputado que falou o que quis na cara de oito presidentes da Câmara do período petista.

A profanação da soberania do eleitor recebeu um freio da multidão. E mostrou que a polarização é um crack viciante que o PT usa para entorpecer o País. Bastaram nuances de autonomia individual para que a obsessão pela ideologia, que o servia, o derrubasse: “Se toda direita é fascista, toda esquerda é comunista. Que 2018 seja o cemitério do mundo binário para poder salvar as pessoas que se transformaram no que elas combatem. Quem não rasgar o manual da má compreensão dos fatos vai casar Marine Le Pen com Roger Waters em missa cantada por Bono Vox. Largue o alucinógeno da certeza e ouça bater, sem preconceito e clichês, o coração apertado de Cid Gomes, Regina Duarte e Mano Brown. Busque outra explanação, fuja da ignorância racional, até para xingar é preciso ser inteligente. Afinal, votar nem sempre é para escolher o melhor, às vezes é para impedir que o ruim queira ficar.

Podemos até estar diante de outro sósia da improvisação nacional. Ênfases e repetições: sai a CUT, entra Agulhas Negras. Sai a vida para a luta, entra a luta pela vida. Que não saia a sociedade civil e volte a inteligência racional. Toda eleição tem uma atmosfera, um costume. Essa consagrou um programa mais de rejeição do que de escolha. E não foi um programa de poucos. A agitação desarranjada das massas revelou-se lógica e determinada.

Meio antipolítica, a campanha vitoriosa foi tomada por apelos morais, que dialogaram melhor com a subjetividade do eleitor. Primeiro, porque as redes sociais foram escolhidas no século 21 para comunicar os segredos mais íntimos e as surpreendentes confidências das pessoas comuns. É o divã do povão. Segundo, porque as regulações que não têm como ser feitas é melhor que não existam. Travar a internet é bloquear a inteligência atrevida, o inesperado, o sarcasmo.

Uma campanha feita por celular, com votos adquiridos num click, decifrou um dos códigos que emperram o Brasil: o atraso tecnológico que é a gestão analógica das coisas em governos sem inteligência digital. Como a vitória foi feita pelo celular, podemos quebrar um tabu. Está inaugurada a democracia digital e o vislumbre de um futuro interessante e mais barato: inovação no Executivo e a desnecessidade do Parlamento de tempo integral, sem mandato presencial, salvo para votar emenda constitucional.

Sabemos que uma coisa é eleger, outra é governar. E o jogo começou. Primeiramente, não há erro no convite a Sergio Moro, o ministro da Justiça dos sonhos do PT original. Segundo, não é o ministro da Economia que aparece no horizonte das necessidades subjetivas, mas sim um grande porta-voz. O novo presidente precisará aceitar pesos domésticos para evitar previsíveis contrapesos externos. E no exterior, diferente do Brasil, acredita-se naquilo que a pessoa fala. Gringo leva as coisas ao pé da letra. E há temas sensíveis: ONU; a força espiritual de Jerusalém para o monoteísmo; nem divórcio da China nem casamento monogâmico com os EUA, dois amores inevitáveis. Ter na ponta da língua uma solução diplomática-humanitária para a Venezuela, um mandato internacional via OEA.

O ministro porta-voz deve ajudar o presidente a se livrar do rótulo de extrema direita. Nenhuma extrema tem prestígio. Como é religioso, sugiro que faça como Moisés, que, com dificuldades de comunicação, pediu a Deus alguém para falar por ele. Assim foi feito, Moisés fala com Deus e Aarão, seu irmão, com o povo e os faraós. Quem sabe, poderá até ser feita a prometida “travessia do Mar Vermelho”. Pois bem falado e compreendido, que Jair nem apague cores do arco-íris nem nos leve deserto adentro.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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