O militarismo é um sistema

Quem muito recebe muito pode perder. A simplicidade costuma não ser nada, mas livra a pessoa da humilhação incomparável quando desatenta a coisas inoportunas colocadas em lugares que não lhe são adequados. É triste ver a violência ter se tornado meio de resolver problema em qualquer ambiente. E militares não terem consciência de que foram associados a isso por civis e militares.

Quem confunde convicções próprias com princípios costuma se colocar à margem do que critica. É atroz o sofrimento derivado de erros das instituições totais e da cultura de clausura e tratamento moral em internatos, quartéis, sanatórios e tribunais. A multiplicidade da inteligência humana acaba prejudicada diante do arrebatamento de donos da verdade, seja um clérigo, militar, médico ou juiz.

É desaconselhável uns nomearem outros retardatários da civilização. Os destinos se encontram e o tempo, este aliado da verdade, impõe sobriedade a quem não separa as coisas. Maldade e interesse pessoal, bem e mal costumam andar bem misturados. Visões, premonições, educação, falta dela.

Manter-se à espera, dar tempo ao tempo, ajuda a decifrar muito mal entendido. Há males que vêm para bem é possível repetir sem reticências. Na vida familiar é possível, pelo silêncio, abafar um acontecimento desagradável e relevar a discórdia em nome da paz em casa. Na vida pública, no entanto, a história começa a definhar pelo silêncio na espera de que delitos desapareçam do mapa das provações.

A degeneração das normas agrava as tribulações da sociedade. Não há, fora da realidade, nenhum ponto fixo. Normalmente a uma causa segue um determinado efeito. Para não se envergonhar da lógica, da mecânica das coisas, melhor seguir as leis estáveis e apostar menos na psicologia do interesse e no uso oportunista da possibilidade. Serve também para a riqueza obtida por fraudes mal auditadas em lojas de varejo.

Por sorte, o militarismo no Brasil não é obcecado por líderes que fizeram mal ao mundo. Aquele tipo raça-pura ou guia genial dos povos inclinado a conduzir multidões desnorteadas por caminho que só ele conhece.

O militarismo brasileiro é um sistema não personalista que reconhece na hierarquia a fonte do respeito à ordem e à disciplina, perdendo o líder a relevância ao sair do cargo. O que se viu dia 8 de janeiro foi o clímax de um contrassenso de militares que confundiram o campo de batalha imaginando que ter tropa maior é estar no caminho certo. Com os nomes civis pelos quais não são conhecidos, perceberiam que o fervor que salva não é o da paixão que ofusca o senso.

Desrazão é usar o poder, passageiro, derivado da hierarquia militar, e de origem civil, para se deixar levar pela ilusão de sedição. De costas para as conexões nacionais e navegações internacionais que dão partida no tanque, decolam o avião, ocupam os mares e acionam as armas, se surpreenderam com a ordem unida que assegura que militar algum é uma ilha.

Quem observa o coração do brasileiro percebe a admiração que tem por valores militares e até os veja, erroneamente, como pedagogos do castigo. Mesmo de alma branda e compassiva, há famílias que querem o filho recrutado para “melhorar o comportamento”. Não é de esperar, pois, que militares entendam isso errado e se comportem de forma desproporcional saturando o País de dúvidas sobre sua boa vocação. Ninguém, somente os próprios militares, vão conseguir incompatibilizar nosso povo com sua importância na sociedade.

Os militares são filhos de seu tempo e o fato de partilharem sua atividade com a simpatia da sociedade não dá a eles o sentido de estirpe de seres intocáveis. Lamentavelmente, um certo poder civil-militar infiltrou, pela via eleitoral, a violência de ânimo no inconsciente da Nação. Exacerbado o sentido do seu papel, tropeçaram em erro ao querer impulsionar uma força armada em direção ao confronto civil. Sem avaliar as dimensões da secessão nem suspeitar da fragilidade do comando político que a manipulava, se esqueceram de que é no exterior e nas fronteiras que a Força mostra bandeira.

O papel que o militarismo assume no Brasil não deve ser visto como traço distinto da sua vocação profissional. A atenção necessária que o País precisa é para a marca espiritualmente assombrada da época atual, em que a dimensão e qualidade do poder, riqueza e influência tem muito do feitiço que dela decorre.

A torpeza com que foi sondada a autoridade do poder civil no seu primeiro mês de governo, de forma rude, classista e zombeteira, usando simulacro de revoltosos para espalhar, pela mão de serviçais, a discórdia – enquanto tropas se mantinham na mais indigna imobilidade – foi um poço de perfídia. Uma cilada de país condescendente, com seu correspondente nas fraudes econômicas, da qual vão escapar da responsabilidade os medalhados, como dizem nos quartéis ocorrer nos tribunais dos civis.

Sem um pensamento novo não há como esperar um comportamento novo. O espírito do sistema militar precisa se ajustar ao espírito do regime democrático. Pois é obscura a consciência de quem não sabe em que consiste seu papel.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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