O papel do indivíduo na História

O Estado de S. Paulo – 09 de novembro de 2022

O lobo da montanha come o cordeiro na planície acusando-o de sujar sua água unicamente pelo princípio da força, e não da subordinação lógica. Como não pode, pelo instinto, fundar o direito de desvirtuar o processo causal e fazer o rio correr do vale para cima, a água do cordeiro é uma desculpa e vai sempre ser a causa da ira do lobo. Só a fábula enfrenta a fantasia do caráter irreversível da coisa malfeita. 

A eleição é um cavaleiro veloz. A grita admoestatória do mercado contra o problema fiscal deveria ser da mesma grandeza da percepção do problema social. Onde está o verdadeiro estorvo? O que afeta o senso de segurança do Brasil é ser governado por quem não se interessa em saber quanto de malefício a democracia suporta. E, neste mesmo período longo iniciado nos anos 1980, a eleição de agora decidiu, por um fio de bigode, quem tem condições de encerrá-lo. O Brasil precisa dar um próximo passo. 

Quando a necessidade se faz consciência, é preciso estar preparado para se manter no poder apoiado por amplas camadas da sociedade. É isso que isola a paixão política do fatalismo ruidoso do sectário e permite despontar a ação enérgica dos que se arriscam a mudar a prática. 

Sim, há momentos em que os fatos sociais e psicológicos se incorporam aos fatos políticos. E exigem um talento especial do líder para ser, sinceramente, o que for necessário e útil ao momento do País, e não dele próprio. A eleição mostrou que nem sempre a força pessoal que o líder projeta é favorável a ele. Especialmente se os desafios gerais do momento dispensam as particularidades de sua personalidade. 

Este é um momento destes em que é possível ver o papel do indivíduo na História criar possibilidade de ressurgimento da esperança num povo. Não é palavra de ordem nem programa preconcebido. É interpretar e discernir seu sentido com imaginação. 

Nascido da harmonia das contradições, deve ter um cromatismo melhor que realce o branco, uma síntese de todas as cores. É no encontro de contraintuições, calma, que a política é um fator de dinamização de humanismo e criatividade. É hora de ouvir e escutar o mundo que nos rodeia e não deixar erodir o significado do que estamos vivendo. 

Relembro um fato da minha vida política e parlamentar que, de certa forma, incorpora o princípio universal que diz que é incompreendida a ideia que vem antes da hora. 

Desde os anos 1980, defendo a união da social-democracia com o movimento dos trabalhadores. Nunca achei que houvesse vanguarda de classe nas lutas políticas, mas o pluralismo das ideias múltiplas que nascem dentro do movimento social geral e progressista. Busquei a afinidade com todos os partidos onde houvesse defensores com a causa de inscrever os direitos humanos e o progresso econômico para todos no rol das coisas essenciais da vida harmoniosa e fraterna. Ganhei o apelido, um pouco carinhoso, um tanto debochado, de pelicano, meio petista, meio tucano. Tive problemas na convivência partidária interna nas campanhas por introduzir traços da cor azul em meus panfletos. Dialogava bem com os liberais modernos no Parlamento. 

Quando Lula e Alckmin, dois colegas constituintes de 1988 – formuladores dos princípios do Estado Democrático de Direito que são a regra magna da Constituição brasileira – decidiram fazer campanha juntos, minha memória acordou o esquecimento daquela velha ideia de composição suprapartidária, atento à unidade nacional e à busca de construir um caminho que ofereça ao País tranquilidade e prosperidade. Fossem tempos melhores, de menos ansiedade e incerteza, aproveitadores da confusão teriam menos espaço para produzir engano nos sentidos e sentimento do povo. 

O resultado da eleição para o Parlamento é prova de que a História está se fazendo, o frisson das gerações em movimento, cada vez mais claros os sinais inimagináveis destes tempos. Os seis constituintes que restaram no Congresso – Paulo Paim e Renan Calheiros, no Senado; Benedita da Silva, Aécio Neves, Lídice da Mata e Sergio Brito, na Câmara – terão a companhia dos dois constituintes que vão governar agora o País. 

Ninguém mais capaz de servir às grandes necessidades do momento, de estar atento às particularidades e às influências gerais de todo este tempo do que quem vai jurar fidelidade à Constituição que ajudou a escrever. Memória das modificações mais ou menos lentas das condições sociais e econômicas, e da necessidade permanente de reforma maior ou menor das instituições, a Constituinte não agiu espontaneamente. Exigiu a intervenção de líderes adequados ou designados como capazes de escrever o estatuto do funcionamento da Nação. É evidente que ser um constituinte não é um símbolo da resolução dos problemas brasileiros, mas um sinal de que homens e mulheres assumiram a responsabilidade de formular a melhor forma de resolvê-los. 

Lula e Alckmin, duas das mais importantes personalidades do Brasil, souberam converter em força política a tendência para a mudança que existe na sociedade. Não a criaram, mas, como souberam interpretá-la melhor, são agora os maiores representantes dela.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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