Os militares

O Estado de S. Paulo – 12 de agosto de 2020.

Como uma poltrona gasta e fora de moda, a Presidência da República é charmosa, mas nunca foi bonita, nem quando nova. Envolvida desde a origem em perfídias, corporativismo, endeusamentos indevidos e esperanças desfeitas, essa senhora de 129 anos mais uma vez dissolve o casamento civil. Sem perspectiva, diz que é consensual, pondo culpa na eleição. 

Confusa, vendo o eleito indicar militares como únicos com capacidade de combater a corrupção e fortalecer o papel do poder estatal, concede carta-branca à tropa para agir como força de ocupação. 

Para dissimular essa peacekeeping inédita, libera a Polícia Federal para aleijar o ciclo PT-PSDB como estratégia para tirar parentes do noticiário. Criticado predominantemente como devedor em atraso, toca o seu governo caranguejo, bizarro e simétrico, com os conchavos políticos antigos. Usufrui a surrada agenda manipulatória imposta pelos governos midiáticos dos últimos 30 anos. Todo dia a mesma discrepância entre reputação e notoriedade, ser famoso ou ser falado, condenar na TV antes de acusar no tribunal. Foi à esquerda que se cozinhou a sociedade confessional da vergonha perdida, dando sabor aos clérigos da Lava Jato, comidos crus agora à direita.  

Qualquer ladainha de dizer que a Presidência é incompetente é mentira. A Presidência é incorrigível. A crise avança outra vez na mesma direção de preferir cavalgar na sela dos pobres do que reconhecer seu direito de fabricar arreios. Pobres dos pobres. Por alguns reais o governante os terá a seu serviço. Coquete, a senhora deixa escapar: enquanto se tem força para agradar, não se diz que é corromper. Política é romance de especuladores. 

Enquanto isso, apreensiva por ver mais de 100 mil brasileiros morrerem em seu colo por negligência sua, mergulha dentro de si. É falsidade não reconhecer a natureza sindical do governo. Feminina, a velha dama pensa em pedir desculpas à antiga primeira-dama que, sem malícia, plantou um canteiro com a bandeira do seu partido no jardim do Alvorada. Precavida, rascunha carta aos sindicatos dizendo que o Exército não será sua CUT. Diplomática, suspende as críticas à teocracia islâmica, à China, a Cuba e à Venezuela. São prismas de militarismos, mas não o nosso, desconversa. 

A Presidência pressente aquele momento triste em que nem a alma reage. Vê pecado em usufruir o Deus cristão dispensando sua moralidade. Sente a realidade econômica desmoralizante de um Pernalonga que vai andando, sem notar que já está andando por cima do abismo. Sabe que conflito/rivalidade/inimizade/picuinha combinam pouco com justiça. Mas lista de desafetos, não, não podemos dormir descansados.  

Decide fingir que não vê o desastre cívico que é apostar em poder assimétrico, armar civis, incrementar a mentalidade militar com alcance sem fundamento, incentivos e estímulos incompatíveis com sua natureza profissional. O resultado logo esbarrará na pior das equações: a capacidade da força impulsionada sem avaliar todas as dimensões e a noção de comando supremo ajustado como a fechadura envolve a chave. 

Qualquer agravo à transgressão da lógica está no horizonte. Comando militar acima da estatura nacional e internacional do estadista, refém de diplomacia sem campo de manobra, provocará pesados danos ao País. Pois poder militar partidarizado, ao invés de dissuasório e capaz de seduzir adversários, sinaliza para a emersão de soberania maligna. Como poder interno armado só lhe restará o caráter parapolicial. Logo envolvido em corrida armamentista ou avançando sobre as polícias estaduais, ampliando a vastidão da insegurança pública, matriz de secessão.  

É erro os militares se infiltrarem no interior do poder político para serem nova classe dirigente. Pessoalmente são democráticos, neutros ou autoritários, como os civis, mas como sistema político o militarismo sempre foi parte essencial do despotismo moderno. Militares como corporação estável e profissional das nações democráticas não precisam do exercício do poder político para obter identidade social. É no exterior que a força mostra bandeira. 

A pátria dos especuladores não é nenhum país. Sua riqueza sem fundamento se alimenta da bolsa divorciada da realidade. De outro lado, a pandemia autorizou um governo Saps (Serviço de Alimentação da Previdência Social, que funcionou até os anos 1960), especialista em provisões. Saciar apetites legítimos ou não é a expectativa que ainda sustenta este governo. Ou seja, se o Brasil deslizar para um regime autoritário não será somente pela conhecida vocação do presidente para o arbítrio.  

As ideias do governo são desintegradas, voluntaristas e se parecem com literatura de autoajuda. Seu discurso se organiza em torno da individualização dos problemas, mesmo com doença importada. Pela primeira vez um grande sofrimento não seria visto como um fracasso individual e o País poderia unir-se na dor.  

Mas, não. Ele deu um jeito de distribuir a fragilidade a cada um. 

Em apenas cinco meses e com o dobro de mortes dos 20 anos da Guerra do Vietnã, a política informa aos militares quão desconhecido é esse front.

Leia também no site do Estadão.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *